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Uma experiência gastronômica no ar rarefeito de La Paz

“Estou mesmo ficando velho”, teria pensado com os botões que não tenho na camiseta enquanto resfolegava por subir a inclinação na saída do avião, arrastando –pesarosamente— uma reles malinha de mão. Tanto cansaço por nada.

Só me caiu a ficha quando o motorista decretou: “É sua primeira vez em La Paz? Então vamos andar mais devagar ou não vai conseguir respirar”.

Eu já tinha enfrentado algumas altitudes. Mas as estações de esqui do Colorado, nos Estados Unidos, a 2.500 metros sobre o nível do mar, não me abalaram. Mil metros acima disso, Cusco, no Peru, me pareceu mais trágica, com seus balões de oxigênio pelas paredes do aeroporto para emergências –mas tampouco me aturdiu.

Já La Paz mostrou-me de cara o efeito do ar rarefeito, mal saindo da cabine pressurizada do avião. O aeroporto fica na cidade vizinha de El Alto (sacou o nome?…), a 4.150 metros. Mais altitude ainda que La Paz, que se avista 500 metros abaixo. E quase quatro quilômetros acima da escala obrigatória, Santa Cruz de La Sierra —pois voos longos não podem ir direto para El Alto, porque (me explicaram) aeronaves grandes e pesadas com o combustível depois teriam dificuldade em levantar voo, dado que o ar rarefeito oferece pouca resistência em sua aerodinâmica.

Mas o desconforto valeu muito a pena. Primeiro por conhecer La Paz, cidade única, metrópole que, inconformada em apenas repousar aninhada num vale, também ocupa as encostas íngremes em volta, urbanizadas dramaticamente com casas de alvenaria vermelha que tingem as escarpas.

O teleférico que a liga às altitudes da vizinha El Alto, numa subida de meio quilômetro literalmente de tirar o fôlego, já é um programa. Unindo centros e periferias mais pobres, me lembrou o de Medellin, um primor de urbanização colombiana; e me entristeceu em pensar que o inclusivo teleférico carioca do complexo do Alemão já não opera mais, soçobrado pela avalanche de corrupção dos governos e pelo poder do crime organizado que assolam o estado.

A viagem compensou também pela oportunidade de conhecer o restaurante Gustu (“gosto”, em quechua), que completa dez anos. Uma bela história.

Fundado em 2013 pelo visionário dinamarquês Claus Meyer, que também criou o Noma, de Copenhague (deste já não participa), o restaurante é um ator radical da cultura alimentar boliviana. Sua moderna arquitetura é toda executada com materiais e elementos locais. Sua cozinha contemporânea é um mostruário de produtos bolivianos, do jacaré aos vegetais, da Amazônia aos Andes (mesmo vinhos ou uísques são todos de produção local).

Ao nascer, o Gustu implantou uma escola de formação gastronômica para jovens sem inserção profissional. Hoje, a chef Marsia Taha participa de excursões por todos os biomas, junto com uma equipe multidisciplinar, para conhecer e pesquisar produtos e produtores locais, apoiando famílias, comunidades rurais, povos originários e nações indígenas.

Sua cozinha é de raiz, traduz as asperezas da rigorosa natureza boliviana, mas é delicada: há um estimulante colorido, o uso de folhas e frutos, uma leveza que suaviza os dramáticos contrastes de sua terra.

Na primeira noite (foi no último dia 31), participei, convidado por eles, do jantar de aniversário do restaurante, feito a quatro mãos com o chef peruano Virgílio Martínez em torno de ingredientes da Amazônia boliviana. No dia seguinte, provei o menu de Marsia, que passeia por toda a biodiversidade do país.

Fiquei apenas dois dias na cidade. Fui instruído, ainda no aeroporto, a ser cuidadoso nos três primeiros dias em La Paz: evitar caminhadas, álcool, muita comida. Não deu.

Fonte: Folha de S.Paulo

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