
Três coisas nunca falham no Natal:
1) O eterno debate sobre a pertinência da uva-passa na comida;
2) As piadinhas com a música da Simone;
3) O queixume moralista de quem acha que a festa cristã foi desvirtuada numa farra de comilança e consumismo.
Neste ano, vou engrossar o coro dos descontentes. Não tenho nada contra nem a favor das passas. Idem com a Simone. É a parada cristã que me enoja. O vilipêndio, em pleno Natal, ao que há de bom na doutrina do seguidores de Jesus. Que coisa: justo eu, ateu e anticlerical.
Optei pelo ateísmo, mas cresci numa sociedade cristã e absorvi sua herança meio que por osmose. Sei até algumas historinhas da Bíblia.
Saca só: logo depois do Natal real oficial, José e Maria vazaram com Jesus para o Egito. Precisaram fugir porque o rei Herodes, ao saber do nascimento do messias, mandara matar todos os bebês da Judeia. Está no Evangelho de Mateus.
Eis que a figura abjeta do Herodes bíblico ressurge em 2021, perto do Natal. O rei judeu da antiguidade tem sido associado a Marcelo Queiroga, o quarto ministro da Saúde do governo Bolsonaro. Queiroga até ganhou um apelido desairoso nas redes: Queirodes.
Isso porque Queiroga está deliberadamente atrasando o início da vacinação contra a Covid-19 das crianças entre 5 e 11 anos de idade.
Assim como Herodes era pau-mandado de Roma, o ministro segue ordens. Ele tenta lustrar com palavras vazias a inacreditável obsessão do presidente por implodir todos os pilares da civilidade.
Bolsonaro vai à missa, indica juiz evangélico para o STF, põe Deus no slogan de campanha e confraterniza com Malafaias e Valdemiros. Mas a verdade que grita é: Bolsonaro usa o nome de Jesus para fazer o mal.
Bolsonaro decora um ou dois salmos para recitar enquanto comete espurcícias e sordidezes, coisas tão horríveis que até as palavras para descrevê-las são feias.
Bolsonaro faz o mal em nome de Jesus, e Queirodes é seu cúmplice. Todos os cristãos que ainda apoiam sua pororoca de destruição e morte são cúmplices.
Gente que finge não ver a maldade de Bolsonaro, na esperança de que ele emplaque uma pauta de costumes retrógrada, racista, homofóbica, misógina. São criminosos que comem peru e arrotam passagens bíblicas para simular retidão moral.
O que os escandaliza? O vídeo de Bolsonaro dançando funk num barco. Não porque a letra seja o extrato do vinhoto, mas porque é funk.
Bolsonaro havia ameaçado fazer um pronunciamento em rede de TV na noite da véspera de Natal. Não sei se cumpriu a ameaça. Espero que não. Ninguém merece o desgosto de ter a casa invadida por esse indivíduo no meio da festa.
Tinha um pessoal convocando panelaço para a hora do tal do pronunciamento. Tomara que tenham pensado melhor e desistido. Ninguém merece se ocupar mentalmente com o Bolsonaro no Natal. Não deixe o Grinch de Rio das Pedras estragar a sua ceia.
Então é Natal, e eu entreguei este texto com antecedência para poder ocupar as panelas com boa comida. E a mente com pessoas que valem a pena. Feliz Natal.
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Fonte: Folha de S.Paulo