As relações líquidas e a antiquada ideia do amor

Contrapondo-se aos tradicionais modelos de relacionamento sufocantes, baseados em papeis rígidos que permaneciam estáveis por uma vida inteira, a pós-modernidade trouxe uma nova realidade: aquela que o famoso sociólogo polonês Zygmut Bauman chamou de “relações líquidas” (justamente as de uma “sociedade líquida”).

A “liquidez” das constantes mudanças em toda parte da vida social unida à sensação da possibilidade de mudar, alterar, desviar a qualquer hora e sem prestar qualquer conta a ninguém (nem a si próprios) seguindo um fluxo de constante impermanência, trazem, por um lado, um senso de conquistada liberdade, por outro, encobrem questões profundas que no fluir da suposta liberdade mantêm constante a permanência de um coração inseguro e confuso.

As relações líquidas são aquelas que ficam indefinidas e se mantêm indefiníveis, ao ponto de ter que se inventar nomes novos para evitar o, agora apavorante quanto antiquado, conceito de “namoro”. O vínculo líquido não é um vínculo de amor, não é também um “se conhecer” e nem uma amizade. O que é? É certamente uma relação sexual.

Duas pessoas se encontram de vez em quando, sem compromisso algum uma com a outra para fazer sexo. Pode-se aproveitar o momento para recheá-lo de alguma conversa, mas o foco é bifocal: o sexo e o não-compromisso. Tudo o resto é brinde, se tem e quando tem. E finge-se que estamos todos felizes. A sexualidade em questão não quer ter nada a ver com o amor porque o conceito de “amor” está em desuso, dá medo, é palavra grande demais e não se sabe bem com seria a configuração do amor.

Portanto, evita-se se apaixonar, ou a paixão é frequente, rápida e transitória, ou ela simplesmente não acontece. Enquanto isso, o “te amo” virou uma expressão linguística anacrônica, atrasada, perturbadora e de dúbia consistência. Pergunta: Será mesmo que é possível permanecer nessa sexualidade descompromissada como expressão de liberdade individual? Eu tenho as minhas dúvidas.

As aparências podem ser variadas e certamente os tempos multiformes, assim como com certeza os modelos tradicionais de relacionamento precisam ser transformados… Mas continuamos seres humanos e a saber as necessidades profundas permanecem estáveis. São elas: 1. A conexão profunda com outro ser humano (lembrando que intimidade verdadeira só é possível entre duas pessoas); 2. A necessidade humana de um vínculo amoroso, construtivo e estável.

Quem se mantém estável em relações líquidas é porque tem simplesmente medo de se vincular, geralmente por causa de relacionamentos anteriores não digeridos, processados e superados. Faltou terapia. Outro medo: o de se confundir, fundir, perder com e na outra pessoa, o que pertence ao modelo de relacionamento antigo. Resposta: uma pessoa assim não conhece a si próprio o suficiente, faltou novamente terapia, há aqui um processo de individuação incipiente que não conseguiu deslanchar.

Enfim, a pessoa não consegue se vincular porque simplesmente tem o nível emocional de um adolescente que está explorando o mundo, sua sexualidade e as garotas (ou garotos) e vive “se apaixonando” ou por um cabelo bonito, ou uma curva atraente, um sorriso sedutor, uma pose excitante… e assim vai. A psicanálise pós-junguiana já respondeu a esta questão muito tempo atrás: não se trata de mudar de pessoa como de mudar o modelo de relação, que é a forma como duas pessoas interagem uma com a outra. Nos tempos atuais, o único modo possível de relação, que seja “líquido”, no sentido de fluído, flexível, em constante movimento, é aquele na qual os dois sujeitos da relação estão eles próprios, cada um consigo mesmo num processo de constante transformação, crescimento e, portanto, autoconhecimento.

É somente desta forma que é possível sair tanto das relações tradicionais claustrofóbicas como das relações líquidas ansiogências e convenientes que nada mais são que espelhos de imaturidade emocional e do medo de amar. A tal liberdade, supostamente conquistada, de poder ter muitos encontros sem compromissos nada mais é que uma balela de adultos com o coração ferido de crianças que tremem à ideia de poderem ser feridos novamente. Assim, quando estas pessoas são atingidas pelas fechas de Cupido sentindo aquele sentimento profundo que seus ancestrais chamariam de “amor”, palavra agora tabu, elas racionalizam. Racionalizar é um pensar hipócrita que no lugar de encarar os “fatos internos” (= sentimento) os manipula e distorce, os amortiza e mutila para que caibam nas pequenas caixinhas que sua alma reprimida permite. Liberdade verdadeira é aquela que permite amar quando o amor existe e sair de um relacionamento quando o amor acaba. Liberdade verdadeira é se permitir não ter papeis mas funções num relacionamento, expressando qualidades, interesses e atitudes que evoluem conforme a consciência da pessoa também se expande. O que deve ser inconstante são os papeis.

O que precisa ser constante é a renovação permanente das formas do amor, o que só é possível quando constantemente renovado dentro de cada um da relação. O amor é algo vivo, não uma abstração romântica. O amor é algo que corre nas veias como sangue fresco, nutritivo, revigorante. Não é uma afirmação a ser feita uma vez por todas, não é um entrar num esquema de relacionamento, estacionar e se manter fixos: isso mata o amor. O amor precisa arejar, mudar de ideia, de forma, de cheiro, de cor, de paisagem – o que não corresponde de forma alguma à mudança de camas e parceiros e isso pela simples razão que o amor requer profundidade. E para aprofundar é preciso permanecer. Amor é aventura, descoberta, novidade. Sem isso o amor morre.

Mas é também permanência, constância, compromisso. Sem isso também o amor morre. Concluindo: as relações líquidas são o resultado da desconstrução dos antigos modelos de relacionamento, mas acabaram se tornando um lugar cômodo onde esconder a própria incompetência amorosa, a falta de maturidade, a dependência afetiva mascarada de sexualidade e a sexualidade desvinculada do amor (ou castrada do amor?).

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Fonte: Gazeta News