A Brasília negra que vi e que Lula vai precisar conhecer

Quando o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva mudou-se para o Palácio do Planalto, em Brasília, para governar o país pela primeira vez em 2003 ainda tínhamos uma sociedade que não tratava a pauta racial com a importância que merece. Após avanços provocados, inclusive em seu governo, e duas dezenas de anos depois, Lula volta a ser morador do Distrito Federal no mesmo cargo de presidente e não vai poder ignorar a questão racial e algumas histórias apagadas pelo racismo estrutural.

Estive na capital federal em novembro para a estreia do tour Brasília Negra, do Guia Negro e Me Leva Cerrado, que tem a guia de turismo Bianca Daya como anfitriã, e tive a oportunidade de conhecer histórias e lugares que poucas pessoas conhecem.

A exposição histórico-fotográfica Reintegração de posse — Narrativas da presença negra na história do Distrito Federal, com curadoria da professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) Ana Flávia Magalhães Pinto, foi um dos destaques. A mostra chama a atenção para a presença dessa população em diversos espaços sociais da cidade, desde a fase de construção. Sediada na Galeria dos Estados, a exposição fica disponível até março e deveria ser obrigatória.

Por lá, também fica a Praça Marielle Franco, que bem poderia ganhar uma estátua da vereadora do Rio assassinada em 2018 e o painel que comemora a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Galeria dos Estados é palco também da festa Makossa, baile black que ocorre há 20 anos e é referência da cultura negra na cidade.

Conhecida por seus ipês floridos, a capital abriga ainda baobás, plantados na fase de seu planejamento e que remetem ao continente africano. Embaixadas africanas como Nigéria e Senegal sediam espaços de arte e também podem ser visitadas, propiciando uma conexão com o continente mãe. Uma outra visita interessante é o Restaurante Sunugal, do chef Papy, que serve comidas senegalesas.

A cena do rap é bastante forte, principalmente nas cidades satélites, e foi interessante percorrer um “circuito do samba” que está presente em diferentes bares e lugares, que organizam rodas famosas.

Um desses locais é o Bar e Restaurante Tia Zélia, na Vila Planalto, que serve comida caseira com tempero baiano e tem samba aos sábados. A deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ) é uma das frequentadoras e poderia levar seu correligionário do Planalto para dar uma volta por essa outra Brasília.

Outro exemplo de lugar com forte história negra é a Prainha, onde fica a Praça dos Orixás, que abriga esculturas das divindades do candomblé. Palco de manifestações do movimento negro e de atos das religiões de matriz africana é também alvo constante da intolerância religiosa, levando a depredação frequente das imagens.

Uma coisa é fato: Lula vai precisar novamente sair do Palácio, visitar outros países do mundo, mas também quilombos, aldeias indígenas e histórias que a história não conta. O novo presidente pode começar fazendo o dever de casa e conhecer o seu entorno. Ele vai precisar entender que nós negros não aceitaremos mais ficar em segundo plano.

Vamos querer espaços nos ministérios, nas decisões, na concepção das políticas públicas e também nos espaços urbanos das cidades. Então, o recado está dado: Lula vem conhecer a Brasília Negra e amplie esse desafio para redescobrir lugares e histórias negras do Brasil todo.

Fonte: Folha de S.Paulo

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