A ceia de Natal dos patriotas de porta de quartel

– Pai?

– Fala, Enzo. O que foi agora?

– A gente precisa mesmo ficar aqui? Já é quase Natal…

– Que papo de traidor é esse? Se você não fosse meu filho, eu achava que era infiltrado da esquerda! Nós somos patriotas. Precisamos ficar na frente do quartel para salvar o Brasil do comunismo.

– Quem disse?

– O presidente. Estamos aqui para autorizar o uso do artigo 142, a GLO, tudo dentro das quatro linhas. S.O.S. Forças Armadas!

– Cadê o presidente? Sumiu depois das eleições. Não deveria estar com o povo?

– Está coordenando as FFAA para combater a esquerdalha e o Xandão Cabeça de Ovo. O Nine não sobe a rampa. Brasil acima de todos.

– Não é Deus acima de todos? Cabeção, kkkkkkkkkkk!

– Cala a boca, moleque! Onde já se viu brincar com coisa tão sagrada? Nós somos cristãos!

– O Natal é uma festa cristã, não? Por que não estamos em casa, com a mamãe, com a família reunida?

– Porque o presidente precisa do povo na rua para libertar o Brasil, quantas vezes eu preciso dizer? Além do mais, sua mãe não quer me ver nem pintado de verde e amarelo.

– Também, pai, você não precisava ter colocado laxante no café do tio Ernesto…

– Aquele comuna maldito, petralha! Igual à irmã! Mas vamos parar de falar na esquerdopata da sua mãe.

– Pai, estou com fome.

– Pega um biscoito aí na mochila.

– Acabou. Dei o último pacote para um morador de rua.

– Como assim??? O biscoito era nossa propriedade. Tá virando cadelinha da Foice de São Paulo? Da Globolixo? Passa um pouco de fome para aprender. Você já é quase um homem, chega de viadagem.

– Pai, eu tenho 13 anos.

– Catorze menos um, tá entendido? Aqui ninguém fala o número da orcrim, da quadrilha que roubou o Brasil!

– Tá… desculpe. É que estou mesmo com muita fome. Empresta o cartão para eu comprar um salgado na lanchonete?

– Não dá. Sua mãe bloqueou o meu cartão da conta conjunta.

– Sério, pai, estou faminto. Vamos para casa. É Natal, a mamãe vai receber a gente com uma ceia…

– De jeito nenhum. Mas vou dizer que também tenho fome. Cadê o pessoal do churrasco? Onde foi parar a tenda da marmita? Esses vendilhões abandonaram a causa. Mas ainda confio na vitória. Deus está ao lado das pessoas de bem. E Ele guia o presidente.

– Olha lá, pai. Aquele homem está comendo um sanduíche. Parece que tem uma sacola cheia deles… eu iria lá pedir, se dividir comida não fosse coisa de socialista.

– Vamos lá! Patriota ajuda patriota.

– Boa noite, amigo. Você por acaso teria um sanduíche sobrando? Eu e meu filho estamos com fome.

– Claro. Pode pegar. Patriota ajuda patriota. Trouxe vários para o Natal no acampamento.

– Deus te abençoe. (Mastiga.) Que gostoso. O que é?

Mortadela. Estava em promoção na padaria do bairro.

– INFILTRADO! COMUNISTA! ESFOLA! LINCHA!

Nunca se soube quem era o homem da mortadela. Ele morreu desfigurado, esmagado junto ao muro do quartel no exato momento em que o relógio marcava a zero hora do dia 25 de dezembro.

Os patriotas de bem distribuíram os sanduíches em partes iguais e agradeceram a bênção da refeição ao menino Jesus.

(Excepcionalmente, a coluna não será publicada na edição impressa em 24/12 e 31/12. Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais. Acompanhe os posts do Instagram e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo

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