A liberdade para morrer de fome

A dupla Jair & Marcelo, também conhecida como Botina & Capacho, entoou novamente nesta semana a cantilena “É Melhor Perder a Vida do que a Liberdade”. Incrível como ainda há quem dê ouvidos para esse ruído que inferniza (e tira) a vida dos brasileiros desde o início da pandemia.

Qual é a liberdade que essa gente defende, afinal? Porque liberdade não é uma coisa só, existem liberdades e liberdades. Você não pode ter todas elas, nem eu posso, ou o mundo seria a barbárie completa.

No documentário “Echoes of a World” (“Ecos de um Mundo”, 2018), o músico inglês Ray Davies revisita composições que fez para sua banda, The Kinks. E ri da própria ingenuidade juvenil quando topa com um verso de “Big Sky” (1968) que diz: “One day we’ll be free” (“Um dia seremos livres”).

“Free from what?”, pergunta-se Davis no filme. Sim, livres de quê? Porque liberdade sem prisão é um conceito que não serve para grande coisa.

Havíamos nos libertado de algumas cadeias nefastas nos últimos tempos. Estávamos livres da ditadura, livres da inflação, livres do mapa da fome, caminhávamos para nos libertar da mentalidade medieval que amaldiçoa este país.

O grupo que foi alçado ao poder nos roubou todas essas liberdades, mas vem falar em liberdade com a boca cheia. Ah, sim, eles se referem à liberdade para fazer coisas. E como são seletivos!

Certamente não falam da liberdade para cuidar da própria vida, casado(a)(e)(x) com quem você bem entender, inalando a fumaça que lhe convier, professando a fé ou a falta de fé que julgar correta, sem perturbação, censura ou prejuízo.

A liberdade é para a maioria, eles dizem, e as minorias que se submetam ou sumam. Será mesmo?

Porque o que Bolsonaro apregoa, e ele nunca negou isso, é a liberdade de matar e morrer. Uma minoria ganha a liberdade para matar; resta à maioria a liberdade para morrer.

Para quem se alista em sua coluna, o presidente quer a liberdade de comprar fuzis pela penca. A liberdade de pregar a aniquilação de gays, comunistas, macumbeiros, povos indígenas, árvores e a democracia.

Bolsonaro se aferra à liberdade de disparar cusparadas infectas em quem luta pelo esforço coletivo para acabar com a pandemia.

O grosso da população fica com a liberdade de escolha. De escolher entre álcool de limpeza e lenha de entulho para cozinhar a pouca comida. Entre o pé de galinha, o osso de primeira e o osso de segunda. Entre o lixo do mercado ou a fila da doação de marmitas. Entre o podre, o vencido, o contaminado e o imundo.

Em partes do sertão potiguar, as pessoas em condição de miséria estavam livres para caçar lagartos ou passarinhos para o jantar. Mas esses animais fugiram da terra desolada pela seca –calangos, bacuraus e até mesmo a asa-branca são livres das amarras que a sociedade nos impõe.

Restou aos homens a liberdade de ir morrendo, pouco a pouco, dia a dia, por falta de comida ou de dignidade. É só escolher a opção desejada.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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