A morte privada dos mercados públicos

A turistada ama de paixão o tal do Mercado da Ribeira, em Lisboa. Estive lá antes e depois da concessão à marca Time Out –grife de guias urbanos que começou com uma revista em Londres– e da conversão da Ribeira numa praça de alimentação.

Na configuração original, a Ribeira era um mercado decadente e absolutamente clássico. Peixarias a emanar cheiros e a verter água de marisco no chão de cimento, frutas à espera de compradores, umas tantas lojas fechadas (nunca se sabe se estão desocupadas ou se abrem em outro horário), outras tantas ofertando artigos sem interesse algum para o passante casual.

Já a nova Ribeira –perdão, o Time Out Market Lisboa– tem restaurantes distribuídos ao redor de uma área com mesas de ocupação comum, exatamente como uma praça de alimentação de shopping center. Os espaços e a linguagem visual são padronizados.

A diferença é que a comida se vende como muito especial. Croqueteria, petiscaria, manteigaria, cardápios assinados por chefs celebridades, filiais de casas tradicionais lisboetas, wine bar, beer experience, hambúrguer, pizza, sushi. O lugar bomba da hora em que abre à hora em que fecha.

Mas só é mercado no nome.

Lembrei-me da Ribeira ao ler, aqui na Folha, sobre a reformulação do mercado de Santo Amaro, também entregue à iniciativa privada. Perdão mais uma vez: agora o espaço se chama Santo Mercado.

Não visitei o Santo Mercado, mas o título da reportagem (“…renasce com cara de shopping…”) e as fotos que a acompanham não deixam dúvidas: também é mercado só no nome. Se terá sucesso com esta nova roupagem, são outros quinhentos.

Parece inevitável que os mercados públicos, tal e qual funcionavam no século 20, estejam condenados à extinção. O modelo não serve bem nem como polo de compras, nem como centro de convivência e visitação.

No que diz respeito às compras, os supermercados oferecem variedade semelhante com autosserviço e checkout unificado. Para itens especiais – como peixes, queijos, charcutaria e produtos exóticos–, a internet oferece uma miríade de opções com entrega em casa.

Perde-se a negociação cara a cara, perde-se a avaliação física do artigo a ser levado, perdem-se tradições. Perdas que interessam pouco ao consumidor contemporâneo.

A modernidade também atropelou os mercados enquanto atração turística. Antes eles representavam o espírito da cidade, ofereciam coisas da terra e só daquela terra. Não mais. O Mercado Central de Belo Horizonte vende queijos feitos em Pomerode (SC). No Mercado do Rio Vermelho (em Salvador), compra-se linguiça de porco duroc feita no interior de São Paulo.

Tornou-se muito fácil comerciar coisas de qualquer origem em qualquer lugar. A freguesia não aceita menos e está certíssima. Como amostra de cultura regional, entretanto, quase tudo vai pelo ralo. Os mercados que persistem na fórmula velha –além dos dois já citados, penso no Mercado da Lapa, em São Paulo–, tendem a ficar iguais e igualmente tediosos.

Além da oferta toda semelhante, há o anacronismo de comércios tradicionais que não dizem nada a frequentadores acostumados com a surra de estímulos do marketing destes dias. Ninguém quer saber de borracha de panela de pressão, de cestos de vime, de fumo de corda, de pescoço de peru, de vassoura piaçava, de tripa para fazer linguiça.

A concessão à iniciativa privada transforma mercados públicos em praças de alimentação com uma ou outra loja de artigos de luxo. Está errado? Nem um pouco, é uma tentativa de manter vivo o espaço do mercado. O mercado em si, mal aí dizer, já foi pro beleléu.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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