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Aeroporto de Buenos Aires vira ‘marquise’ de sem-teto com agravamento da crise

“Coma sem culpa”, diz a embalagem do pacote de batata frita que um amigo de Hernán Osvaldo acaba de trazer da mesa ao lado. “As pessoas aqui têm dinheiro, dão uma mordida assim e jogam fora”, diz, dando uma dentada no ar, segurando um hambúrguer imaginário. “Mas para a gente vale muito.”

Os restos de fast food são tudo que o homem de 38 anos tem comido desde que se mudou para a calçada do Aeroparque Jorge Newbery, há seis meses. O aeroporto internacional fica a poucos minutos do coração de Palermo, um dos bairros mais caros de Buenos Aires, e é a porta de entrada de muitos turistas brasileiros à Argentina.

Com a piora da crise econômica e o crescimento da pobreza, o local virou casa para quem não tem onde morar, como publicou o jornal O Globo. São dezenas de pessoas dormindo nos salões e corredores por meses e até anos, em cena que lembra as marquises dos centros de capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, em menor escala.

O policial Lisandro Nuñes estima que ao menos 50 sem-teto vivam permanentemente ali, mas calcula que à noite o número passa de cem. “Quando comecei a trabalhar, há um ano, já era assim, mas se intensificou nos últimos meses”, diz ele, vestindo o colete laranja da Polícia de Segurança Aeroportuária (PSA).

Esses moradores começaram a chegar em 2021, quando o aeroparque reabriu depois de quase um ano fechado pela pandemia de Covid. Hoje, a concessionária Aeroportos Argentina 2000, que administra o local, tem uma lista para controle com os nomes dos habitantes mais fixos —a Folha não conseguiu contatar a empresa durante o feriado no país.

Laura Día, 53, por exemplo, já vive ali há um ano e meio, porque os hotéis pagos pelo governo em que morava não aceitam seu “perrito” Toto. O vira-lata caramelo que ela chama de filho passa os dias dentro de uma bolsa, porque não pode ficar solto dentro do aeroporto.

“Peguei os 26 mil pesos da minha pensão [R$ 270 na cotação paralela, que rege o cotidiano local], guardei 16 mil e com o resto comprei isso aí para ele”, diz ela enquanto arruma o banco onde dorme.

Laura é cadeirante, por isso prefere o segundo andar, já que no primeiro não há onde sentar. É nesse piso, próximo ao embarque nacional, que a maioria se concentra, estendendo papelões e cobertas no chão para isolar o frio e usando os carrinhos de bagagem como suporte para seus pertences. Num canto, as malas servem ainda de cabana para um homem dormir separado do vaivém de passageiros.

Alguns viajantes olham sem entender, enquanto a maioria passa apressada pelos corredores lotados em meio ao feriado nacional do Dia da Pátria, sem nem ver a quantidade de gente que dorme embaixo de escadas rolantes, diante de letreiros dos voos e nas cadeiras ao lado de quem carrega o celular.

A inflação argentina, que não para de subir e já ultrapassa 100% anuais, faz o peso derreter e coloca uma parcela da população cada vez maior abaixo da linha da pobreza. Em apenas um ano, de 2021 para 2022, o índice subiu dois pontos percentuais, de 37% para 39%.

Dentro desses 19 milhões de pobres, quase 4 milhões são indigentes: ou seja, não têm renda suficiente para nível mínimo de alimentação. Os dados do Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos) são do segundo semestre, e as expectativas são de que aumentem neste ano.

O mesmo deve acontecer com as aferições de pessoas em situação de rua. Em 2022, o instituto contou quase 3.000 no país, no primeiro censo do tipo. Mas ONGs e instituições como Defensorias Públicas estimam números muito maiores, perto dos 10 mil.

Para comparação, as últimas contagens feitas por prefeituras brasileiras apontam quase 32 mil sem-teto apenas na cidade de São Paulo e 8.000 no Rio, em números também considerados subestimados. Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, calculam 206 mil em todo o país.

Roberto Bernal, 36, é um dos que devem engrossar as estatísticas futuras na Argentina. Ele terminou a escola e trabalhou a vida toda como pedreiro, pintor e fazendo bicos na província de Missiones, na fronteira com Paraná e Santa Catarina. Conta que viajou ao Brasil diversas vezes e que adora Florianópolis.

Mas há meses deixou de encontrar trabalho, também por seus antecedentes criminais, e resolveu deixar a família para procurar emprego em Buenos Aires. Chegou no aeroporto há três dias, seguindo a recomendação de um amigo pela segurança e pela proteção do frio —o inverno se aproxima, e as temperaturas começam a cair a 8°C de madrugada.

“Vou ligar para conhecidos que talvez tenham trabalho, para sair dessa situação”, diz ele sentado do lado de fora do aeroporto ao lado de Hernán, que come os restos de batata frita. Atrás, suas camisetas secam num vaso de plantas. Ele tem lavado roupa e tomado banho num centro de acolhimento na Villa 31, uma favela próxima.

“Não fazemos nada porque não é proibido dormir no aeroporto, só não deixamos eles pedirem comida ou dinheiro aqui dentro”, afirma o policial Lisandro. O que não quer dizer que a convivência seja totalmente tranquila: “Às vezes acontecem alguns furtos”.

A cadeirante Laura também reclama de discriminação. Diz que a funcionária da limpeza se recusou a limpar o banheiro preferencial para ela. “Preciso ir para um hotel que aceite o Totó, não posso mais ficar aqui”, lamenta, com a voz embargada. O valor do auxílio não alcança um aluguel, que custa mais de 50 mil pesos (cerca de R$ 500).

Fonte: Folha de S.Paulo