Ao viajar de novo teremos precauções normais ou um surto autoritário?

Muito se especula sobre como será o mundo depois do coronavírus —as viagens, por exemplo? Numa saída gradual da pandemia, a retomada das viagens exigirá cuidados iniciais para dificultar a volta deste vírus.

Um cenário risonho, ainda que de apreensão, indicaria que as pessoas, na descompressão da quarentena e isolamento social, aproveitariam para respirar outros ares, com medidas de cautela: menos voos, ônibus e trens, horários espaçados para reduzir aglomerações, aeroportos e estações com normas de distanciamento disciplinando. Quem sabe também menos assentos, com os passageiros mais espaçados.

São ilimitadas as medidas de precaução possíveis. Imagino que especialistas em viagens estejam debruçando-se sobre elas melhor do que eu, mero observador e consumidor.

Mas existe também um cenário perturbador. Muitos estão apontando para a necessidade de estrito controle sanitário sobre os viajantes, para dificultar propagação de doenças.

Medidas deste tipo já existem, como a exigência de vacinação contra febre amarela por alguns países. A comprovação de imunização é civilizada: basta mostrar o atestado (“carteirinha”).

Se for necessário, em breve, comprovar imunização contra o coronavírus para viajar, a coisa já será mais complicada: ainda não existe vacina; nem tantos kits para testes disponíveis (e mesmo assim, se no dia do teste a pessoa estiver imune, não significa que ao embarcar ainda estaria). Entraves que autoridades sanitárias já devem estar estudando, também com mais competência do que eu.

O que me inquieta é que uma das soluções apontadas para este monitoramento reforça planos de tons autoritários: inocular chips em nosso corpo que permitam aos governos acompanhar online e instantaneamente nossa saúde… mas não só.

O chip seria a porta de entrada para todo tipo de monitoramento. O nanoinvasor não contaria só sobre vacinas: a ideia completa, e muito prática para autoridades, é que ali também estivessem informações da nossa vida de cidadão —do CPF aos boletos atrasados, do número de filhos aos amores fracassados.

A ideia de um Estado controlando muito mais do que nossas vacinas e viagens parece o sonho dos tiranos das distopias (como a do best-seller redivivo “1984”, onde o Grande Irmão tudo sabe e tudo vê). E aparece num momento de confusas reflexões sobre o papel do Estado.

A pandemia mostrou que o Estado ainda é necessário, para desgosto dos neoliberais que promoveram a quebra de políticas sociais, a concentração de riquezas e o empobrecimento das camadas populares. Eles não aboliram o Estado; mas com o cínico argumento de que o “mercado” organizasse a economia, passaram a desmontar o Estado (social) para usá-lo em benefício dos poderosos.

Se nesta crise fica evidente a necessidade do Estado para organizar o bem comum, especialmente dos mais desvalidos (e até de ricos vitimados), isso não significa que seja necessário um Estado todo-poderoso que monitore todos os nossos movimentos (já não bastam os toques de recolher que estamos aceitando? Ou a espionagem de Google e Facebook?).

Mesmo porque sempre haverá a questão: quem estará controlando o Estado que estará nos controlando? Que controle a sociedade terá sobre eventuais tiranos apossados do leme de nossas vidas?

Imagine que à cabeça do governo esteja um tenente fascista (só promovido a capitão porque o Exército precisou desta burocracia para enxotá-lo). E que comande um ministério de incompetentes —por exemplo, um Mandetta, capacho do tal ex-tenente que até outro dia operava o desmonte do SUS enquanto lambia botas dos planos de saúde, agindo desastradamente no início da pandemia (embora, é verdade, com posteriores acertos, seja por uma recaída humanitária ou por interesses eleitorais). É esta gente que você desejaria controlando cada um dos seus passos?

Se para viajar for preciso uma carteirinha comprovando vacina ou outras medidas sanitárias, este será um chato mas mínimo inconveniente. Mas, se for preciso que um grande irmão esteja no controle estrito de mim, não será melhor ficar em casa?

Fonte: Folha de S.Paulo