Argentina, 1985: eu estava lá

E quando a gente viaja para algum lugar e percebe muito depois que era o momento certo, que entraria na história?

Senti isso assistindo, finalmente, ao filme “Argentina 1985”, de Santiago Mitre. Eu passei por lá naquela época e muitos sentimentos me vieram à tona acompanhando a interpretação de Ricardo Darín (que por sinal conheci anos depois, mas em outras circunstâncias).

Respiração suspensa, coração batendo um pouco mais forte, assim vi a saga do promotor Julio Strassera, que (entre tocantes acordes da abertura de “Tannhäuser”, de Richard Wagner) tenta colocar na cadeia a canalha que dirigiu a última ditadura militar argentina (1976-1983). Como já me emocionara, em novembro último, ao saber da morte de Hebe de Bonafini, líder das Mães da Praça de Maio , que, lenços brancos na cabeça, protestavam pelos familiares desaparecidos políticos.

Eu a conheci na Argentina, 1985 (ou 1984), quando militante da Quarta Internacional trotskista (que aqui no Brasil, clandestina, era mais conhecida por nossa tendência estudantil Liberdade e Lula, ou Libelu).

Na época, já havia ido à Argentina ainda na ditadura: minha lembrança mais forte era a da chegada ao país, com o aparato repressivo ostensivo que aguardava qualquer viajante no aeroporto de Ezeiza e ao longo da estrada para a capital.

Mas tinha lembranças mais prosaicas também. Hospedado na casa de companheiros locais de nossa organização, guardei alguns flashes mentais:

1 – para combater o frio, uma ou duas bocas do fogão ficavam ligadas enquanto conversávamos na cozinha;

2 – para a sede, muito vinho argentino, em geral de má qualidade, mas bem disfarçado pela água gasosa de sifão que o diluía (e, com isso, bebia-se mais; a Argentina era campeã mundial de consumo per capita de vinho, com cerca de impressionantes 90 litros por ano);

3 – para comer, mesmo numa casa simples, o almoço era um portentoso bife de chorizo (assado na grelha superior do forno), talvez acompanhado por agrião ou batata, e o jantar, o mesmo bifão, talvez acompanhado por batata ou agrião;

4 – na rua, café com leite e medialuna (croissant) em algum charmoso café metido a europeu;

5 – e para encontros clandestinos, que tinham que ser em lugares públicos (pois em geral não conhecíamos a casa, nem mesmo o nome verdadeiro, dos companheiros), não faltavam livrarias lotadas.

Em minha última passagem a serviço político por Buenos Aires (depois viriam muitas como jornalista), além de reuniões para discussão de nossas intervenções no país e no continente, escrevi uma longa reportagem sobre a situação pós-ditadura –exatamente o período descrito no filme.

Para isso participei do cortejo diário em que as Mães da Praça de Maio, diante do palácio do governo, exigiam a volta (ou a explicação do paradeiro) dos seus entes queridos.

Na linha de frente, identifiquei Hebe de Bonafini. Conversei com ela enquanto marchávamos. Uma mulher pequena, com cara de uma frágil tia, até que começasse a falar. Seu assertivo sotaque portenho se agigantava quando proferia sua determinação de não conceder um minuto de tranquilidade ou perdão aos assassinos.

Não lembro literalmente suas palavras —que transcrevi em francês no artigo do jornal Informations Ouvrières (assinado por um certo Oracio Bomfim…), cujo exemplar se perdeu no tempo.

Mas posso imaginar que hoje, se a entrevistasse sobre aquela Argentina —e sobre o Brasil atual—, diante da desfaçatez com que Ustras, Bolsonaros e tantos milicos celebram as torturas que cometeram, ela teria ecoado o que estamos dizendo hoje: #SEMANISTIA.

Fonte: Folha de S.Paulo

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