Até os lugares que eu já conhecia bem serão outros quando eu voltar a viajar

Número 319 da rua Bleecker. Em 1989, antes de as lojas de Marc Jacobs se instalarem (e fecharem), bem antes de a Magnolia Bakery começar timidamente para depois virar um império gourmet, ali ficava uma das minhas lojas favoritas no mundo todo.

A Rebel Rebel não era maior do que uma dessas bancas de revistas turbinadas. Não tinha uma vitrine vistosa: no vidro, apenas seu logo aplicado em preto, muitas vezes até difícil de ler, tamanho o ruído visual das capas de disco que enfeitavam suas paredes.

Sim, você já podia, naquele final dos anos 1980, comprar CDs. Mas, para ser respeitado mesmo, o ideal era sair de lá com pelo menos uma bolacha de vinil. Se surpreendesse o dono da loja, David Shebiro, perguntando sobre uma banda inglesa de que ele ainda não tinha ouvido falar, capaz que você fosse
convidado para ser sócio!

Mas essa era uma possibilidade remota, uma vez que David era o que nós, apaixonados por discos, sempre sonhamos ser um dia: a pessoa mais informada do universo. Musical.

Com o orçamento apertado de um correspondente júnior desta própria Folha, não sobravam muitos dólares para eu gastar com música. Comprar pelo menos um CD ou vinil por semana na Rebel Rebel, porém, era ponto de honra para mim. Podia ser também um número raro da The Face ou da Smash Hits, por exemplo. O importante era sair de lá me sentindo parte daquele universo “descolado” que ela evocava.

Recuperar um pouco dessa nostalgia era meu plano quando respondi a uma amiga que partiu na semana passada para passar dez dias em Nova York (com um compromisso profissional e devidamente vacinada) e me perguntou se eu queria alguma coisa de lá.

Não vou a Nova York desde abril de 2015. Explicando rápido, deixei de priorizar a cidade nos últimos anos. Paris tornou-se minha conexão principal para viajar pelo mundo (antes de nos tornarmos os turistas indesejados de hoje). E meus destinos finais passaram a ser lá no Sudeste Asiático.

Assim, quando minha amiga me contou da viagem dela, deu uma certa saudade. Pedi a ela então que fosse ao endereço na Bleecker e me trouxesse um CD de uma banda inglesa pouco conhecida chamada Cherry Pickles.

David Shebiro certamente conheceria a Cherry Pickles, mas não demonstraria nenhuma surpresa com o pedido inusitado. Aliás, como sempre. Já ouço essas bandas direto no streaming, mas o que eu queria mesmo era alguma coisa que chegasse naquela sacolinha azul onde se lia Rebel Rebel.

Desde 1989, não havia uma vez em que eu passasse por Nova York e não visitasse a loja. Gostava de achar que eu tinha uma relação pessoal com ela, não só por adorar a música que a batizou, um clássico de David Bowie, mas também por me sentir em casa no meio daquela bagunça de vinil, plástico e papel.

O souvenir encomendado a minha amiga traria tudo isso de volta. Mas reparou que estou escrevendo tudo aqui no passado? É que Rebel Rebel fechou. Em junho de 2016.

Descobri isso quando fui checar o WhatsApp da minha amiga, que dizia não ter encontrado nenhuma loja naquele endereço. Chocado, descobri que David teve de sair do local para dar espaço à ampliação de uma loja de roupa vizinha. E assim sumiu mais um pedaço da minha história em Nova York, mais um pedaço da história de Nova York.

As cidades mudam, claro. A padaria divina na frente do meu endereço em Paris fechou antes da pandemia. Um dos meus restaurantes favoritos no Bairro Alto em Lisboa, O Caracol, desapareceu. Uma das melhores experiências gastronômicas que tive em Buenos Aires, num lugar chamado ¾, perto da Florida, já não existe mais.

O fechamento da Rebel Rebel, no entanto, mexeu demais comigo. Me fez pensar, mais ainda, no mundo que vamos encontrar quando pudermos novamente viajar.

Mesmo as cidades que eu conhecia bem já serão outras quando eu as revisitar. Vou ter então de construir novas memórias. E torcer, para quem sabe, encontrar David Shebiro nas ruas do West Village para lhe perguntar se ele conhece a última sensação de Londres…

Fonte: Folha de S.Paulo