Avenida para o futuro

Imagine algumas das avenidas mais gostosas de passear —porque são lindas, porque têm história, porque são espaçosas para os pedestres com suas calçadas largas e arborizadas. Garanto que em qualquer lista estará a avenida dos Champs-Élysées, em Paris.

Já escrevi aqui, há tempos, sobre o crime urbanístico e arquitetônico (fora as mutretas e corrupção) cometido em São Paulo com a criação da avenida Nova Faria Lima, nos tempos do malufismo.

Tendo sido tomada a decisão, discutível também, de rasgar um bairro para abrir a enorme via, surgiu a possibilidade de ouro de, a partir do zero, criar uma obra de arte com qualidade urbanística, arquitetônica e humana.

A força do dinheiro e a obtusidade brega daqueles governantes fizeram o contrário: uma ode à ganância e ao mau gosto, uma avenida horrorosa, feita para o automóvel, de prédios novos-ricos blindados para impedir a circulação de pessoas, uma via desumana sem espaço nem serviços para os pedestres.

Este crime estético e humanístico é o oposto da avenida dos Champs-Élysées: aberta primeiro no século 17, sua reformulação no século 19 também surgiu de uma intervenção radical que derrubou parte da cidade para rasgar novas vias com motivações políticas elitistas (é toda uma história, que inclui a Comuna de Paris), mas o resultado foi embelezar e dar um respiro à cidade.

Hoje turistas de todo o mundo ali caminham extasiados tendo numa ponta o obelisco da Place de la Concorde, na outra o Arco do Triunfo, e no caminho quase dois quilômetros de largas calçadas arborizadas de castanheiras, ladeadas de lojas, bares, livrarias, cinemas, galerias e restaurantes (tudo o que em São Paulo a Nova Faria Lima nos nega).

Pelo caminho há de tudo —moradores com seus cachorros, turistas ricos admirando vitrines, imigrantes pobres pedindo ajuda… A vida que pulsa, enfim.

Parece a perfeição. E ainda assim… Os franceses estão achando pouco. Já está pronto um projeto para humanizar a avenida, cuja etapa inicial deve ficar pronta até os Jogos Olímpicos de Verão de 2024, com a meta de concluir toda a remodelação em 2030.

Em resumo, a ideia é transformar a avenida e seus arredores num “jardim extraordinário”, declarou nesta semana a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, ao jornal francês Le Journal du Dimanche.

Em resumo, o projeto do escritório francês de arquitetura PCA-Stream prevê diminuir as pistas para carros e aumentar as calçadas para pedestres e áreas verdes. O custo da brincadeira? 250 milhões de euros, algo como R$ 1,7 bilhão.

Por que tanto investimento em remodelar uma avenida que parece tão exemplar? Uma razão: ela já não é amigável para os próprios habitantes da cidade.

Foi o que concluiu o estudo dos arquitetos (veja em cutt.ly/DjbL8If), analisando a circulação de pessoas ali: 68% são turistas (dos quais, 85% estrangeiros). Fora moradores e pessoas que trabalham por perto, somente 5% dos que passeiam no local são parisienses.

E por que o charmoso bulevar é rejeitado pelos moradores? Segundo o mesmo estudo, os motivos são turismo excessivo, tráfego, poluição, excesso de consumismo e superfícies impermeáveis.

A ideia, então, é fazer da avenida não somente um ponto turístico para quem está de passagem, mas um recanto acolhedor para quem vive todo dia na cidade.

O que nos faz lembrar de locais onde o imperativo do turismo (com o dinheiro que isso traz) termina prejudicando a qualidade de vida local e, como um efeito rebote, contaminando de volta a atmosfera inclusive para os mais sensíveis visitantes de fora.

Veneza é infernal para quem mora ali, mas os visitantes também sofrem (ou alguém realmente gosta de estar lá na alta estação, enfrentando multidões para se espremer na ponte de Rialto ou nos restaurantes, pagando em tudo preços mais altos que o campanário da praça São Marcos?).

No ambicioso plano de dez anos para a nova avenida dos Champs-Élysées me parece estar uma grande sacada, até meio óbvia, mas frequentemente esquecida: para ser turística, e portanto realmente agradável para os visitantes, a cidade tem que ser antes de tudo amigável para os próprios moradores.

Fonte: Folha de S.Paulo