Cícero: o bistrô que também é galeria de arte brasileira em Lisboa

Com a proposta de unir o melhor da arte moderna brasileira a clássicos da gastronomia francesa, o recém-inaugurado Cícero Bistrot, em Lisboa, tem um acervo digno de galeria.

Não à toa, entre um prato e outro, a maior parte dos clientes aproveita para circular pelos dois andares do restaurante e conferir de perto as obras, assinadas por diferentes artistas. A grande estrela, porém, é o pernambucano Cícero Dias (1907-2003), que dá nome ao restaurante.

“Além de ser uma referência do modernismo brasileiro, Cícero Dias é também uma referência do ponto de vista de suas ações contra regimes exceção, tanto no Brasil quanto na Europa”, diz um dos sócios, o empresário brasileiro Paulo Dalla Nora Macedo, que se mudou neste ano para Portugal com a família.

Na bagagem vieram também dois contêineres com obras de arte reunidas ao longo de 25 anos como colecionador. Conterrâneo do empresário, Dias já era destaque no acervo, agora parcialmente disponível ao público.

Cícero Dias começou a deixar seu nome na arte brasileira em 1931, quando causou furor ao expor pela primeira vez “Eu Vi o Mundo… Ele Começava no Recife”: um painel de 15 metros que retratava pequenas cenas, com vários elementos de nudez e romantismo. No ano seguinte, ilustrou a primeira edição do livro “Casa-grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.

Perseguido pela ditadura do Estado Novo, partiu para o exílio em Paris em 1937. Na França, aproximou de artistas de vanguarda, como Joan Miró e Pablo Picasso, de quem se tornou amigo.

Em 1942, após o Brasil declarar guerra à Alemanha, Cícero Dias é preso em Paris, então ocupada pelos nazistas. Após negociações diplomáticas que envolveram ainda uma troca de prisioneiros, o artista é libertado e deixa a França.

Ele se muda então para Portugal e passa a atuar como adido cultural da embaixada brasileira. No mesmo ano, Dias ajuda nos esforços de tradução de “Poésie et Verité”, de Paul Eluard: um poema que exalta a esperança em momentos difíceis. Com ajuda da embaixada britânica, a obra é lançada no front de guerra por aviões da Força Aérea Real, tendo grande repercussão. A atuação do pintor brasileiro nesse episódio lhe rendeu, anos depois, uma condecoração do governo francês.

Com o fim da guerra, Cícero Dias retorna a Paris, onde permaneceu até sua morte, em 2003. As décadas no exterior não apagaram as referências a Pernambuco em seu trabalho.

Instalado em Campo de Ourique, o bairro mais francês da capital portuguesa, o novo bistrô pretende unir as influências dos três grandes locais da vida de Cícero Dias: Pernambuco, Paris e Lisboa.

“O restaurante tem essa homenagem inegável a Cícero Dias, mas não só a ele. Há uma série de outros artistas que, de alguma forma, também foram influenciados por esse movimento modernista”, diz Paulo Dalla Nora.

O espaço é dividido em três salas temáticas. Na primeira, entre os trabalhos expostos, destacam-se as litogravuras e um óleo sobre tela de Cícero Dias, além de um painel da francesa Marianne Peretti.

“Marianne é uma artista parisiense que fez um pouco o percurso contrário. Na década de 1940, ela vai morar no Brasil. Ela foi depois foi convidada para trabalhar na equipe de Oscar Niemeyer em Brasília, foi a única mulher a integrar o grupo de artistas que construiu a capital”, relembra o empresário.

A segunda sala é dedicada à gastronomia francesa. O espaço reúne pinturas contemporâneas, com obras de Sidnei Tendler, Felix Farfan, Bruno Vilela, Kilian Glasner e Paulo Brusky.

Mais reservado, o “Salão Referências Populares do Brasil” tem como protagonista um painel em madeira do artista Cariri. A sala tem ainda trabalhos de Lula Cardoso Ayres, Samico e João Câmara.

O cardápio, onde a culinária francesa tem elementos luso-brasileiros, é assinado pelo chef português Hugo Cortez Teixeira. Um dos destaques dessas influências é o prato de carabineiro e robalo do mar, com molho de coco e azeite de dendê, servido com arroz basmati (39 euros, cerca de R$ 201).

Cícero Bistrot
R. Saraiva de Carvalho 171
Lisboa, Portugal

Fonte: Folha de S.Paulo