Como uma estátua do Coisa Ruim virou nos avessos uma cidade da Espanha

Pacata era um bom adjetivo para descrever a pequena Segóvia, na Espanha —pelo menos até o começo deste ano. Mas aí o Diabo chegou na cidade e virou de cabeça para baixo o cotidiano desse adorável patrimônio da humanidade.

Os detalhes da história são saborosíssimos. Para quem gosta de viagens e lendas: para celebrar uma crença local (e, sem dúvida, atrair mais alguns turistas) o conselho regional encomendou uma estátua do Demônio ao artista José Antonio Abella. Ninguém deu muita bola para o projeto até as primeiras imagens do Cão aparecerem —com um rosto adoravelmente humano.

Com cerca de um metro e meio de altura e um sorriso, digamos, maroto, a estátua é… simpática. E, mesmo com seus dois protuberantes chifres, ela é bem “instagramável”. O que significa que daqui para diante vamos ver inúmeras selfies onde o Coisa Ruim vai aparecer ao lado de “#segovia”. 

Que mal há nisso? Pergunte aos 5.000 católicos que assinaram um pedido (indeferido) para que Lúcifer ficasse fora de seus muros —indiferentes à origem de toda a história: a de que o diabo, que em troca da alma de uma donzela havia prometido construir o famoso aqueduto da cidade (para que ela não mais caminhasse tanto para encher seus potes), tinha sido derrotado pelas orações da mulher!

O quiproquó me fez lembrar que eu mesmo já tinha tirado uma foto ao lado de um certo Belzebu. Vinte anos atrás, quando fazia uma viagem pelos cantos do mundo onde um dia já se falou português, no interior de Moçambique, vi aquela figura andando num chão batido de terra, meia dúzia de tambores o acompanhando num inusitado séquito.

Era uma festa popular, foi o que nos explicaram com resistência as testemunhas do cortejo. Havia uma certa reverência à figura que passava, misturada a um deboche. As crianças, como sempre, eram as mais atrevidas, correndo para o Tinhoso —e dele— com medo e riso diante daquela figura curiosa.

Quem encarnava o Capeta era um garoto de não mais de 14 anos, todo vestido de vermelho: calça, camisa de botão e um tênis dois números acima do seu pé. Vermelhas eram também suas luvas, com as quais segurava uma espada, em gestos menos ameaçadores que cômicos. 

E se havia alguma coisa realmente assustadora era a máscara que usava: um retalho felpudo, também escarlate, amarrado atrás da cabeça, com furos que deixavam a gente ver seus olhos brilhantes, duas narinas pequenas e trêmulas, e os lábios que revelavam os dentes da frente bem separados.

Assisti à cena por quase meia hora quando o Sinistro, finalmente cansado, deu espaço a outro personagem não menos esquisito: um adolescente de shorts e camiseta rosa usando uma máscara antiga de madeira, batendo com a bunda no chão —anos antes do funk carioca institucionalizar o movimento…

Quando vi a Besta quieta, sentada ali na sarjeta, não hesitei: quis tirar uma foto ao seu lado. No final dos anos 1990, claro, a selfie ainda não era uma ideia formada, e pedi ao cinegrafista que viajava comigo que fizesse a gentileza de imortalizar aquele momento num negativo que só dias depois seria revelado. 

Estou sorrindo ao lado daquela criatura —menos uma provocação do que uma displicência. Ele mesmo descansa apoiado na sua espada. Se sorri também, não sei: sua mão esquerda esconde a boca. Mas nada ali metia medo. Mesmo as crianças sabiam que se tratava de uma representação. Como a obra que chegou em Segóvia. Não há o que temer.

Os habitantes mais pios da cidade argumentam que não querem viver num destino de peregrinação do Satanás. Mas em tempos em que o Demo anda solto pelo nosso dia a dia e ganha likes nas redes sociais com pactos ainda mais sinistros que aquele proposto à donzela de Segóvia, será que uma peça de bronze —ou uma fantasia vermelha— tem mesmo esse poder?

Tem não. Palavra de quem já se sentou ao lado do Danado.

Fonte: Folha de S.Paulo