Descobri uma nova Paris com o livro ‘Daft’

Sabe quando um livro te mostra uma cidade que você conhece bem, só que de uma maneira diferente? Foi exatamente o que aconteceu quando comecei a ler “Daft”. De Pauline Guéna e Anne-Sophie Jahn.

Não, não se trata daquele filão manjado. Você sabe qual: basta entrar numa livraria especializada em viagens (as poucas sobreviventes) ou mesmo uma comum, na seção de viagens, e tem sempre aqueles títulos que prometem roteiros alternativos para uma cidade famosa.

Já comprei vários guias assim. Também já baixei vários aplicativos de viagem que oferecem atrações “secretas”, além dos cartões-postais. E achei coisas bem interessantes.

Na maioria, porém, as dicas são de interesse tão específico que dificilmente agradariam à maioria dos turistas. Não faltam também curiosidades tolas que nem mereciam menção. Parei de procurar literatura assim. Aí eu achei “Daft” numa livraria ali do Marais, em Paris mesmo, e fui apresentado a uma cena da cidade que eu realmente não conhecia, talvez nunca vá conhecer, mas que me deixou fascinado.

Se você tem um mínimo de conexão com música pop, já desconfiou que um livro chamado “Daft” tem a ver com uma certa banda chamada Daft Punk. Se por acaso o nome dela ainda não te diz nada, procure no streaming a faixa ” “. Viu?

O duo formado pelos franceses Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Cristo —mais conhecido como Guy-Man— é fruto de uma cena eletrônica parisiense improvável, que acabou acontecendo em função da fascinação dos dois garotos, ainda na adolescência, na primeira metade dos anos 90, pela música que brotava de Chicago (EUA) naquela época.

Não quero fazer aqui uma resenha do livro, que recomendo fortemente, aliás, para qualquer fã de música, não apenas eletrônica. Colecionando vinhetas de personagens da noite de Paris de 30 anos atrás, “Daft” é uma leitura deliciosa. E nostálgica.

Quero te seduzir com essa nostalgia. Quando disse que o livro levou a uma Paris desconhecida, eu me referia menos a um local do que a um tempo.

Entre o final dos anos 1980 e o início dos 90 eu não ia tanto à capital francesa como, digamos, nos últimos dez anos. Mas de longe eu acompanhava o que acontecia por lá, sobretudo pelas revistas que chegavam ao Brasil.

De uma delas, ícone da década de 80, eu tenho a coleção guardada até hoje. Chama-se “Actuel” e eu costumo dizer que foi uma das inspirações para me tornar jornalista. Extremamente influente na cena alternativa parisiense, ela faz uma mera aparição em “Daft” antes de o livro mergulhar numa cena musical verdadeiramente alternativa e surpreendente.

Thomas e Guy-Man vagavam por lojas de discos importados, raridades já na sua época; festas no Beaubourg; programas de rádios independentes; e microclubes por onde circulavam caça-talentos de gravadoras.

Era uma cena com a qual, três décadas atrás, eu só poderia sonhar. Quase todos os lugares que as autoras citam em “Daft” não existem mais, a começar pela própria Redação da “Actuel”, no Faubourg Saint-Antoine. (A rádio Nova, antiga vizinha da revista, ainda existe, forte e influente, em outro endereço). E que hoje eu posso até visitar, mas não mais experimentar. A não ser, claro, pela literatura.

Com o livro na mão, desta última vez que estive na cidade, andei por locais citados na obra. Nos iPods, a discografia do Daft Punk. E inventei um roteiro que misturava história recente, memória e música. Foram dias explorando esse itinerário inédito. Se eu aproveitei? Vou usar um sucesso da banda para responder: “One more time“!

Fonte: Folha de S.Paulo

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