Livraria cenário de ‘Emily in Paris’ é achado para turista na França

Mesmo que o leitor não tenha assistido, certamente ouviu falar da série “Emily in Paris”, a versão millennial e ainda mais frívola da cringe e novaiorquina “Sex and the City”.

Nela, a jovem protagonista, uma Cinderela do marketing de Chicago, incapaz de pedir um pain au chocolat na língua de Molière, é a responsável por lançar um novo ponto turístico no repertório já vasto da cidade mais cobiçada do mundo: a Place de la Estrapade, uma pequenina, bucólica e ultra charmosa praça no coração do mítico Quartier Latin, a poucos passos da Sorbonne histórica e do Panthéon.

Foi na Place de la Estrapade —onde, até o século 18, guilhotinavam cabeças insubordináveis e soldados desertores— que Emily ofereceu um jantar de aniversário, embrulhada em um vestido rosa choque que daria paúra até mesmo na estilista italiana Elza Schiaparelli, a mais fervorosa defensora da cor.

Mas, ah, o cenário. No plano de fundo da soirée, em uma bonita tomada lenta executada por um travelling, um contraste no mínimo curioso: a livraria portuguesa de um ermitão francês com ares de Bartlebly que todo turista precisa conhecer.

Trata-se da Librairie Portugaise & Brésilienne, que, desde 1986, é um verdadeiro achado na França. A última especializada em línguas lusófonas do país, a livraria está repleta de títulos —bien sûr— em português de Portugal e do Brasil, no original, traduzidos para o francês ou bilíngues.

Os livros vão de clássicos a jovens escritores, vindos de inúmeras editoras, incluindo as da lavra do próprio livreiro, o tradutor e editor Michel Chandeige.

A Editora Chandeigne é a maior autoridade em edição luso francesa da França, com um catálogo de quase 200 títulos publicados em 30 anos. Os temas são variados para um mergulho completo no universo lusófono: etnográficos, romanescos, poéticos, históricos.

Entre os lançamentos, o editor destaca a nova antologia da poesia portuguesa, das origens ao século 20, do original “La Poésie du Portugal, des origines au XX Siécle”, de Max De Carvalho (também à venda no site da editora).

Outro charme, entre os inúmeros do lugar, é poder conhecer a literatura portuguesa para além dos bastiões, a nova cena literária dos nove países lusófonos, ver as obras brasileiras traduzidas para o francês, ou até se deparar com pequenas curiosidades, como as edições humorísticas de literatura de cordel —é bom exemplo “O Matuto que Perdeu a Mulher pro Facebook”, de Tião Simpatia.

Por falar em simpatia, não espere de Michel Chandeigne o caloroso temperamento brasileiro. Ele é um livreiro francês cuja formação se deu em Portugal. Em resumo, ao turista resta aproveitar as estantes e se contentar em receber boas indicações.

Na livraria, nem tudo são flores e chafarizes, mas ela resiste em um dos quartiers mais privilegiados (e caros) da cidade. Para entender sua importância, vale dizer que não existe mais uma única livraria hispânica ou alemã na França. Algumas fecharam as portas durante a pandemia, mesmo aquelas tidas como instituições locais, caso da Manzarine em Saint Germain Des Prés.

Visitar a livraria se torna, assim, mais que um passeio turístico: é uma forma de concedê-la prestígio e ainda garantir a sua existência.

Na praça onde Emily, na série, exibe todo o seu senso estético novo rico, e a despeito de um lento, mas constante, desaparecimento de uma Paris meritocrática, a Librairie Portugaise & Brésilienne faz jus ao imaginário artístico e intelectual de Paris.

Nela, é possível se sentir em casa, ou entre o melhor dos dois mundos. Passada a visita inspiradora, o turista tem logo ao lado um belo bistrô com terraço com vista para a praça. Na primavera que se aproxima, dá para pedir “un vin rosé, svp”, e aproveitar a leitura.

A Folha conversou com Michel Chandeigne, que, com estilo lacônico, nomeia sua preferência por Machado de Assis e Guimarães Rosa como “gostos banais”, e ainda afirma que o mercado editorial brasileiro não tem nada de especial.

Quando você se apaixonou pela língua portuguesa?

Na minha nomeação em 1982 no Liceu Francês Charles Lepierre. Lisboa era uma maravilha desconhecida. Houve um trabalho imenso a fazer de descoberta da cultura portuguesa, e lusófona. Depois, o meu trabalho de tradução, iniciado em 1983 (Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Ramos Rosa, Nuno Júdice, etc.). E, por fim, com o meu encontro com a minha esposa, Ariane Witkowski, professora de literatura brasileira (falecida em 2003).

Quais são os desafios de manter uma livraria de língua estrangeira em Paris?

Em 1986, data da fundação, era uma evidência, com ventos favoráveis. Agora, 35 anos depois, a concorrência sobre a internet está imparável. Somos a última livraria lusófona na França. As hispanófonas desapareceram há doze anos, as alemãs, também.

Seus autores brasileiros preferidos, e por quê?

Sem necessidade de justificar, para ler e reler, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, Milton Hatoum, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles. Gostos banais e clássicos. Nada de original. Dentre os jovens autores, Marcelino Freire, Carrascoza, Ana Paula Maia.

Um escritor pouco conhecido ou subestimado que você adora.

Cornelio Penna, Modesto Carone.

Como você vê o mercado editorial brasileiro?

Não vejo nada de especial.

Estrategicamente posicionado no coração do Quartier Latin e da vida intelectual parisiense, como você vê o interesse dos franceses pela literatura brasileira?

Um interesse que foi sempre constante desde Jorge Amado nos anos 40. Mas a verdade é que sobre 350 traduções disponíveis, 95 % das vendas concernem a Jorge Amado, Chico Buarque, Conceição Evaristo, Clarice Lispector, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Paulo Coelho, embora muito vendido, não conta, porque o público não tem o sentimento de ler um autor brasileiro (em geral os temas dos livros dele não são brasileiros), mas pertencente à literatura mundial.

Depois de um período de explosão de FIACs e grandes conglomerados livreiros, a presença de pequenas livrarias de rua e livrarias de nicho cresceu nos Estados Unidos e encolheu no Brasil. Como está esse mercado na França e em Paris?

A França protege há 40 anos as livrarias tradicionais. Atrás de Buenos Aires, Paris é a cidade com o maior número de livrarias por habitante.

Recentemente, a série da Netflix “Emily in Paris” rodou duas temporadas na Place de la Estrapade, o endereço da protagonista e o mesmo da livraria. Você assistiu a série ou acompanhou as gravações? Notou alguma mudança no entorno desde então?

Sim, foi simpático. Há mais turistas para fazer selfies sobre a praça. Mas não são leitores potenciais.

Seu trabalho como tradutor e editor de autores da língua portuguesa à frente da Editora Chandeigne é reconhecido. Fale um pouco da sua linha editorial e quais os próximos lançamentos.

A editora Chandeigne, fundada em 1986 dirigida por Anne Lima, é a pedra angular da nossa atividade. O catálogo abrange todos os domínios da cultura lusófona no Mundo. Livros bilíngues, romances, história, arte, literatura infantil, etc. Quase 200 títulos publicados em 30 anos.

Como é traduzir poesia?

Estou aposentado dessa atividade. Antes eram como exercícios físicos cotidianos. Gostei de poder traduzir a horas perdidas, evitando o labor das obras em prosa, colado a uma cadeira. Está provado que, quanto mais opções nós temos, tanto mais difícil escolher. É o chamado paradoxo da escolha.

Qual o critério de um livreiro para escolher as suas próximas leituras?

Se eu soubesse…

O livro que você recomendaria a um francês para começar a tentar entender o Brasil.

“Racines du Brésil”de Buarque de Holanda, e “Dictionnaire Amoureux du Brésil”, de Gilles Lapouge.

Qual a palavra mais bonita da língua portuguesa?

Coração, nas canções.

Fonte: Folha de S.Paulo