Mais 5 dilemas éticos para atrapalhar sua compra de vinhos

Quero avançar um pouco no tema da coluna passada. Nela, escrevi que boicotar os vinhos da Salton, da Aurora e da Garibaldi servem mais como alívio de consciência e sinalização de virtude do que como uma ação efetiva para pôr fim ao trabalho escravo.

É muito fácil abrir mão de algo que não faz falta alguma, quando as opções de substituição vêm às centenas. Mas, então, substituir por o quê? Você tem certeza de que o vinho substituto atende a todos os requisitos éticos, ambientais, ESG e o raio que o parta?

Escolher vinhos é uma tarefa difícil em vários aspectos, mas vou me furtar de comentar as dificuldades técnicas. Como se trata de uma indústria de atuação internacional, mas de atores menores e mais numerosos do que, digamos, a cervejeira, fica realmente complicado saber a história por trás de cada produtor, de cada garrafa.

As armadilhas e obstáculos éticos estão por toda parte e raramente, como no caso de Bento Gonçalves, elas vêm à tona.

Minha intenção é, confesso, confundir a cabeça de quem se deixou seduzir por uma visão simplista do episódio. Bugar o pensamento de quem acha que vai salvar o mundo ao deixar de entregar 70 contos para os fabricantes nacionais de espumante.

Vamos a cinco questões éticas bastante frequentes para atrapalhar sua próxima compra de vinho.

1. Escravidão não existe só no Brasil

Quando eclodiu o escândalo de Bento Gonçalves, eu já imaginava que casos semelhantes poderiam ter acontecido em outros países. A ocorrência de abusos nas relações de trabalho é favorecida (não disse justificada) pela natureza cíclica do negócio do vinho.

A vinicultura é uma atividade híbrida, metade agrícola, metade industrial. Na indústria, sempre há algo a se fazer: prensar uvas, fermentar, engarrafar, gerenciar estoques, distribuir etc. etc. No campo, há o tempo do trabalho frenético e o tempo de deixar as parreiras dormentes.

Quase todo produtor, no Brasil e no mundo, opta por contratar mão de obra temporária nos dois ou três meses da colheita. Por comodidade, economia e algum cinismo –e aí entra a perversidade intrínseca ao capitalismo–, preferem terceirizar essas contratações. Têm responsabilidade legal sobre os trabalhadores, mas não se envolvem no cotidiano da lida.

Busquei sobre trabalho análogo à escravidão em vinhedos da África do Sul –afinal, país semelhante ao Brasil no que se refere à desigualdade social. Bingo.

Fizeram até um documentário chamado “Bitter Grapes” (“Uvas Amargas”, 2016), sobre condições degradantes de trabalhadores que produzem vinhos para serem enviados a preço de banana para países escandinavos.

Essa chaga, porém, não se restringe à periferia do mundo capitalista.

Denúncias de trabalho escravo complicaram produtores da região francesa de Champagne, que produz as bebidas mais chiques do mundo, em 2021.

Segundo o jornal inglês The Times, oito desses vinhateiros “teriam pagado a catadores de uva, a maioria do Leste Europeu, menos que um salário-mínimo, além de alojá-los em condições sórdidas”.

2. Lavagem de dinheiro e limpeza de reputações

Uma reportagem da revista americana Wine Spectator levantava, já em 2013, a suspeita de que mafiosos russos e chineses estariam comprando vinícolas na França para lavar dinheiro.

Em 2020, investigava-se a infiltração de mafiosos –os originais– no negócio italiano do vinho.

Como saber que vinho pertence a uma organização criminosa? Quase impossível, já que a discrição é a chave desse delito em particular.

Há ainda companhias que têm, como proprietários, magnatas com uma carteira de negócios nebulosa dos pontos de vista social e ambiental –e que querem lustrar a própria imagem com o glamour do vinho.

Mineradores escandinavos, petroleiros sul-americanos, essa galerinha. Em comum, eles sempre montam vinícolas “state-of-the-art”, o máximo do máximo em tecnologia e práticas agrícolas e industriais.

No Brasil, temos o caso da Guaspari, no interior de São Paulo, chique no último e propriedade de uma família que pressionou as autoridades para explorar recursos minerais em terras indígenas.

3. Vinhedos são monoculturas

Áreas extensas de plantação de um mesmo produto desgastam o solo e bagunça a bússola do ecossistema. Nesse ponto, vinhedos não são muito diferentes de fazendas de soja, cana-de-açúcar ou algodão.

4. A praga dos pesticidas

Se não tem nada escrito na embalagem, tem pesticida. Vale para pimentão, vale para tomate, vale para o vinho.

5. Falsificação e contrabando

Um monte de gente está em listas de transmissão do WhatsApp com ofertas de vinhos argentinos a preços escandalosamente baixos. Malbecão de 300 paus por setentinha. Amizade, ou é contrabando ou é falsificação. Em outras palavras: ao comprar, ou você é criminoso ou é só otário mesmo.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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