Marrakech vê multiplicação de hotéis e restaurantes para viajante endinheirado

Um dia antes de um novo vírus vindo da China ter feito soar o alerta de uma pandemia pela ONU, levando países a fechar suas fronteiras, a praça Jemaa el-Fnaa, centro nevrálgico de Marrakech, parecia alheia à ameaça.

Encantadores de cobras, vendedores de sucos superfaturados, comerciantes de todos os tipos de especiarias e muitos, muitos turistas lotavam o centro da medina (parte antiga da cidade, cercada por muralhas) do destino mais visitado do Marrocos.

O que veio depois não é novidade para ninguém. Mas a Covid-19 teve impacto especialmente negativo no país, um dos mais procurados destinos turísticos da África, cujo setor de hospitalidade e serviços representa 11% do PIB e 17% de toda sua força de trabalho.

A redução em mais de 60% das receitas do turismo em 2020 foi um fator importante na recessão do Marrocos, a primeira desde 1995. Em 2020, o número de turistas caiu 78,5% em relação a 2019.

Marrakech deve fechar 2021 com dados também pouco animadores, o que acendeu um alerta para governo e comerciantes sobre a necessidade de um novo turismo, menos massificado.

Desde 2000, a cidade passou a investir em popularizar o turismo como motor econômico. A estratégia teve efeito: em 2002, eram 2,2 milhões de turistas a visitar a cidade por ano. Pouco antes da pandemia, o número foi a 7 milhões.

O Novo Modelo de Desenvolvimento divulgado em setembro pelo rei Mohamed 6º para recuperar os danos da pandemia enfatiza o turismo como estratégico, segundo dados do Banco Mundial. O setor recebe amplo apoio público, com ajuda para empresários e outros profissionais.

Mas à medida que o país reabriu fronteiras (brasileiros imunizados e com testes negativos podem visitar o Marrocos desde junho), Marrakech permanece longe das hordas de turistas, o que levou alguns comerciantes a decidirem não reabrir as portas ainda.

Por outro lado, empresários com cafés, restaurantes e lojas de artes focados em turistas mais exigentes —e com dinheiro— têm recebido um fluxo importante de visitantes dispostos a gastar mais e aproveitar o momento mais calmo na medina.

Para muitos, é um regresso à própria cultura de Marrakech, cidade tomada por palácios, construções nababescas e refúgios naturais que nada lembram o alvoroço do centro da labiríntica e famosa medina.
O Royal Mansour, aberto em 2010, é um exemplo. Propriedade do rei do Marrocos, o hotel é um oásis palaciano. As acomodações são em riads (espécie de palacete) privados. Há ainda dez hectares de jardins e um SPA recoberto de mármore, que neste ano recebeu o prêmio de melhor do mundo no World Luxury Spa Awards (sim, aparentemente há um “Oscar” para eles).

O hotel apostou no luxo para atrair hóspedes endinheirados. De um ateliê de arte instalado numa estufa com painéis de vidro, onde se pode fazer cerâmica, fotografia e bordado, a restaurantes com assinatura de chefs estrelados pelo Guia Michelin, como o italiano Massimiliano Alajmo e o francês Yannick Alléno.

Este último também conduz uma experiência gastronômica exclusiva, que foi batizada de The Nest. Entre limoeiros e palmeiras em uma estrutura montada a cinco metros de altura, oito comensais comem pratos como ceviche de dourada real e lombo de wagyu (bovino mais caro do mundo) enquanto vislumbram a torre da famosa mesquita Koutoubia ao som de uma trilha criada para a ocasião.

Recentemente, o hotel passou a oferecer também uma incursão exclusiva à antiga casa do falecido mestre perfumista Serge Lutens, que não é aberta ao público. Menos de 200 pessoas por ano visitam a chamada Fundação Serge Lutens, e esse é o tipo de experiência que passou a integrar os serviços prestados pelos concierges em busca de oferecer momentos únicos a hóspedes.

As diárias no Royal Mansour, assim como em outros exemplos da crescente cena de hotelaria de luxo da cidade (do exclusivo La Mamounia à rede Mandarin Oriental), chegam a algumas centenas de dólares. Mas nada que afaste os turistas interessados nesse novo tipo de capricho.

Até mesmo empreendedores individuais decidiram apostar no segmento. De olho numa tendência que só deve aumentar na cidade, o hotel boutique El Fenn aproveitou a pandemia para criar quatro novas suítes, um terraço com uma área de piscina e um bar com vista para as montanhas Atlas. “Marrakech nunca esteve tão vibrante”, postou em seu Instagram Howell James, um dos proprietários.

Novas galerias dedicadas a artefatos marroquinos e design contemporâneo também parecem ter ganhado um novo momento em bairros como Gueliz, onde também está o recém-inaugurado Cmooa (Compagnie Marocaine des Oeuvres et Objets d’Art), um espaço de arte que atrai colecionadores.

Longe da movimentação da Jemaa el-Fnaa, lojas como a Herboristerie Bab Agnaou e Henné Sahara Tazarine investem em produtos de beleza e especiarias para quem quer produtos locais autênticos —e evitar as falsificações comuns nas barracas da região.

Até mesmo tradições parecem aproveitar o fluxo de turistas mais exigentes: o ritual do famoso chá marroquino ganhou um renovado palco na moderna confeitaria Amandine, onde as técnicas da pâtisserie francesa se misturam às raízes da doçaria árabe, com massa folhada, mel, flor de rosas e frutos secos.
“Tenho a impressão de que a cidade está se refinando. Os clientes vêm aqui e ficam impressionados com o nosso trabalho”, diz, em inglês, uma das atendentes da confeitaria.

Mas nem tudo é compra. O novo luxo também envolve experiências. O Le Jardin Secret, espaço que remonta à dinastia saadiana e recentemente aberto ao público após mais de um século, virou um dos locais mais visitados da cidade.

Isso se deve em muito às exigências do novo turismo, em que uma maior conexão com a natureza e ambientes com menos concentração de pessoas parecem estar na prioridade dos viajantes.

Construído a partir das ruínas de um palácio de descanso para o sultão Moulay Abdellah, o espaço é um oásis de paz na frenética cidade. “Desde o início da pandemia, Marrakech está completamente diferente, focando cada vez mais o turismo de luxo, com novos hotéis e restaurantes”, diz a brasileira Adriana Bittencourt, que vive na cidade e é cofundadora da agência de viagens Bossa Trips.

Fonte: Folha de S.Paulo

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