Mesmo ruim, é bom

Duas horas para liberar o equipamento na alfândega do aeroporto de Bissau. Se é que eu posso chamar aquele balcão de madeira de onde um funcionário me extorquia US$ 200 de alfândega —e se é que eu posso chamar aquele casebre que nos recebeu na capital da Guiné-Bissau de aeroporto.

Eu fazia o projeto —já tão citado aqui neste espaço— de visitar todos os países que falam o português para uma série de reportagens, e Bissau prometia de cara ser uma das escalas mais difíceis. E olha que ainda nem tinha chegado ao hotel…

No portal do lugar onde tínhamos feito reserva, um pequeno grupo fazia piquete na calada da noite.

“Calada” aqui é mais do que uma figura de linguagem, já que, sem energia elétrica, o lugar estava mais para um sepulcro. E os manifestantes estavam bravos, já que eram funcionários do próprio hotel que estavam sem salário havia semanas.

Ultrapassado mais esse obstáculo, deixei as bagagens no quarto (à luz de velas) e fui com a equipe, Mariano e Bartô, nadar na piscina escura para relaxar do estresse. Foi aí que vieram os morcegos!

Estou (estamos?) há mais de um ano sem viajar pelo mundo e, inevitavelmente, sou inundado de histórias pela minha memória, uma reação que é quase uma defesa dessa vontade enorme que nós, almas viajantes, sentimos nestes tempos.

O curioso é que, esgotadas talvez as reminiscências idílicas —o croissant perfeito de Paris, a primeira visão de Angkor Wat, no Camboja, as catedrais de pedra de Lalibela, na Etiópia, o orfanato de elefantes no Sri Lanka, o melhor tofu do mundo em Kyoto—, começam a vir também os registros dos perrengues por que já passei neste planeta.

Quando voltamos de uma viagem, claro, separamos as melhores histórias para contar, aquelas que, apostamos, farão brilhar os olhos dos amigos e de outros ouvintes. Já as dificuldades, quando muito, transformamos em casos engraçados para disfarçar nossa decepção.

Fato é que não existe “a viagem perfeita”, e acho que meu currículo de turista me credencia a afirmar isso sem hesitação. Exemplos?

Na festa ininterrupta que é Singapura, já dormi na varanda de um hotel aguardando que uma das reservas de seus quartos lotados desse “no show”. No meio do nada, no paraíso de gelo que é a Islândia, meu guia se perdeu numa nevasca e quase congelamos. Um porre que tomei com os vinhos maravilhosos e baratos em Joanesburgo não tem nada de memorável…

Mesmo assim, de tão surradas que estão minhas lembranças depois de um ano de isolamento, minha mente resolveu me oferecer alternativas àqueles momentos tão incríveis. E o mais estranho é que estou gostando de revisitá-los!

Como quando os bilhetes de Bamako a Tombuctu, comprados da antiga Compagnie Aérienne du Mali, ainda em Paris —onde inclusive já havíamos feito o check-in—, foram cancelados no embarque do aeroporto da capital africana.

Tivemos de encarar uma viagem de 19 horas de carro, quase toda em estrada de terra. O sacrifício físico da jornada foi mais que recompensado pela maravilhosa reportagem feita no trajeto, mas mesmo assim…

Já fui “vítima” de vários hotéis “design” (as aspas são uma ironia!) recomendados em revistas “de tendência”. Quando chegava lá, eram pouco mais que albergues maquiados. Em Buenos Aires, Amsterdã, Nova York, Xangai…

Fui achacado pelo funcionário de uma companhia aérea europeia em Almaty (Cazaquistão) que me cobrava uma fortuna de propina para eu não pagar excesso de bagagem. Por pouco não embarquei em Heathrow (Londres), ainda adolescente, por não ter dinheiro para levar 80 discos de vinil. Dormi em salas de espera em SAF, BKK, HKG e SCL.

Quase caí na armadilha de ficar em casa de família em Bucareste (Romênia). Meu banheiro em Pristina (Kosovo) tinha luz estroboscópica. Passei madrugadas em trens gelados na Alemanha. Mas ao menos conheci Berlim Oriental!

O que só nos confirma que, mesmo quando é ruim, viajar é bom. Ou será que estou delirando?

Fonte: Folha de S.Paulo