O Brasil me obriga a parar de beber

Sou privilegiado, não nego, sei disso.

Nunca passei fome na vida e espero nunca passar.

Não obstante, a subida louca dos preços da comida tem me obrigado a mudar hábitos alimentares que eu gostaria de poder manter. Imagino que muitos de vocês, colegas de privilégio, se encontrem em situação semelhante.

Já faz tempo que só mastigo filé mignon quando janto a convite –um privilégio bastante específico do jornalista de gastronomia. Picanha? Pfffffffff! Tem anos que a minha geladeira não a vê.

A exemplo de muitos outros brasileiros, substituí a carne de boi por frango, ovo e porco. Linguiça is the new bife.

No supermercado, tornei-me cliente prime fidelidade plus da prateleira de alimentos na bica da data de vencimento. É um negócio péssimo para se comprar leite e pão de forma, mas funciona bem para determinados artigos.

Queijos duros, por exemplo. Eles têm validade porque a lei assim exige. Embaladinhos a vácuo, na geladeira, duram mais que muito relacionamento por aí.

Ontem, mesmo, meti na sacola um queijo manchego, espanhol, de R$ 39,99 por menos de dez contos. El Duque de La Polvorosa, que nome estupendo.

Troquei de café por um tipo mais ordinário, que também ficou caro demais. Aí rebaixei de novo, para marca mais fuleira. Mesma coisa com o azeite, o óleo de cozinha e o papel hig… fiquemos só na comida.

Abandonei, com dor no coração, o creme de leite fresco. Faço algumas receitas com o creme UHT, de caixinha, inferior. Só que tudo tem limite: se for para estragar a comida com emulsão de soro de leite, gordura vegetal e maisena, melhor abraçar o veganismo.

E tome inflação do tomate, da cenoura, da cebola, inflação do leite e do queijo, inflação da carne. Já está anunciada a inflação da cerveja. Ah, pronto! O mesmo Brasil que nos obriga a beber agora vai nos forçar a parar de beber. Encarar a seco esse pesadelo vai ser treta.

Reclamo, mas passo bem. Não preciso recorrer a osso de vaca, pé de frango, rebarba de presuntada, casca de queijo velho, espinha de peixe, caco de arroz, feijão quebrado ou lixo.

O conforto relativo não me impede de sentir um frio na barriga enquanto despencamos coletivamente, sem freio e com o cinto desafivelado, pirambeira abaixo.

Sou vintage, vivi nos tempos da inflação descontrolada. Nos anos 1980, as pessoas faziam compras para todo o mês no dia em que o pagamento caía na conta –amanhã os preços seriam maiores.

Hábito que está voltando, com uma diferença crucial. Naqueles dias, o salário se reajustava de quando em quando para repor as perdas. Aliás, eram comuns dois negócios chamados “salário” e “emprego de carteira assinada”.

Quem trabalhava dispunha de garantias legais e de sindicatos que pressionavam pelo cumprimento da lei.

É preciso interromper a demolição do Brasil, mas a reconstrução vai demorar. Por ora, estamos no mato sem cachorro, sem pai nem mãe, sem picanha, sem cerveja. Está horrível, vai piorar e vai ser a seco.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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