O escândalo da mortadela no submundo do Mercadão

Fevereiro está sendo intenso, para dizer o mínimo, no Mercado Municipal de São Paulo. Logo depois do golpe da fruta, em que os comerciantes coagem frequentadores a comprar morangos e kiwis por preços absurdos, veio à tona o escândalo da mortadela.

Esse é um ardil ainda mais simplório. Os sujeitos cobram por mortadela de uma marca renomada e entregam produto de qualidade ordinária. Presumidamente. Supostamente.

Tenho zero consideração por quem vai ao Mercadão pela mortadela, mas é um golpe –no sentido de pancada– que atinge fortemente a reputação do lugar. Tanto faz se a reputação é justa ou injusta.

Por detrás da pitaia superfaturada e da mortadela fraudulenta, tem coisa importante acontecendo na rua da Cantareira. O Mercadão passa pela segunda grande transformação neste século.

A primeira foi concluída em 2004, com a inauguração do mezanino com bares e restaurantes. A praça de alimentação desfigurou o velho mercado, que desencanou de ser referência em comércio de alimentos finos para abraçar apaixonadamente a vocação de arapuca turística.

É mais ou menos dessa época a oficialização do sanduíche de mortadela –um monstrengo, uma abominação com 300 gramas de embutido– como símbolo máximo do Mercadão.

A metamorfose ora em curso diz respeito à concessão da operação do Mercado Municipal para a iniciativa privada, iniciada em meados de 2021.

Foi justamente sob a nova gestão que começaram a ser vigiados e punidos vícios ancestrais do mercado, como o esquema das frutas. Para usar a expressão da semana: por coincidência ou não.

Antigos ocupantes dos boxes desconfiam das intenções da concessionária na aplicação (mais do que tardia) das boas práticas.

O contrato de concessão prevê uma moratória de 24 meses no reajuste dos valores de aluguel e condomínio. Por dois anos, os novos gestores têm de se virar como der (cobrando uma nota preta no estacionamento, por exemplo) para obter lucro com o Mercadão.

A suspeita dos comerciantes é que o rigor em fiscalizar e punir tenha por fim a expulsão dos infratores, com a consequente liberação de seus espaços para novos inquilinos que paguem mais.

É algo impossível de se provar. Porque, obviamente, intenção não se demonstra. E porque também é bastante claro que, a despeito das intenções, coibir o abuso dos espertalhões é a coisa certa a se fazer.

O mercado central passa por transformações abaixo da superfície visível. O que vai emergir lá na frente é uma incógnita. Se a criança que nascer dessa gestação tiver a cara do Mercado de Pinheiros, será o fim de uma era.

“O Mercadão já morreu há um bom tempo”, disse um comerciante de lá que pediu para ficar anônimo. E prosseguiu, em tom sorumbático: “Só vai ser assinado o atestado de óbito.”

Compartilho desse sentimento amargo. O Mercado Municipal é uma das tantas coisas de São Paulo que poderiam ser fantásticas, mas floparam.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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