O limão de Itapecerica me levou a Paraisópolis, mas via Cuba e México

Para quem ficou tantos meses trancado em casa, caminhar até a padaria já ganha ares de turismo.

Passear pelo bairro, uma aventura. Fazer de carro um trajeto de meia hora, uma verdadeira redescoberta.

Ruas antes familiares parecem diferentes. E de fato são: no lugar de um grande restaurante, agora há uma pesarosa placa de “Passa-se o ponto”; uma pracinha quase sem vegetação agora viceja; outros detalhes, que não capto, certamente mudam a visão de conjunto; em meio ano é natural que algo se transforme.

Uma escapada até Itapecerica da Serra ganha ares de ousadia desmedida. Afinal, embora o trajeto do meu bairro até ali tome 45 minutos por 35 km, trata-se de outro município, com parte do percurso numa rodovia (a Régis Bittencourt) rasgando territórios estrangeiros de Cotia, de Embu das Artes: definitivamente, uma viagem de verdade.

A arriscada incursão foi movida por imperativos incontornáveis: o apetite, a busca de sabores temperados pela atmosfera impregnada do fumo da churrasqueira onde são preparadas as costelas de um restaurante de beira de estrada (no sentido literal): o Dr. Costela.

A visita, além da carne longamente assada na brasa, trazia como bônus, para o urbano órfão de viagens, a ambientação rural do restaurante: um galpão com uma área fronteiriça à mata, em que viceja uma horta e se insinua um pomar.

Ali nasceu, para mim, uma viagem sentimental ao México, com o relato do proprietário Celso Frizon que, mostrando alguns pés de limão-caipira, limão-cravo, contou que eram dez árvores mexicanas.

Nasceram de mudas trazidas pela cozinheira Lourdes Hernandez, a “guisandera atrevida” que então morava no Brasil com o marido, o genial artista plástico Felipe Ehrenberg (1943-2017), que viera para cá como adido cultural da embaixada de seu país.

Lourdes trouxera anos antes alguns limões da casa de seu pai e presenteara alguns amigos com as sementes. Elas cresceram e frutificaram, originando as mudas que Lourdes então distribuiu. Dez delas tomaram o rumo de Itapecerica.

Mas a história ia mais longe: segundo agora me conta Lourdes, amiga querida que hoje mora de volta no México, aquelas árvores se originaram, na realidade, em Cuba: seu marido trouxera da ilha as sementes que plantara em casa, de onde depois seu sogro, encantado com os limões, levou alguns para sua própria casa. Dali Lourdes as trouxe para o Brasil.

Nessa minha visita ganhei uma dúzia daqueles limões, ao final do almoço —que não foi o final da saga. Pois depois de “enviá-los”, por vídeo, à minha amiga mexicana, levei alguns para minha micro aventura turístico-gastronômica seguinte: uma feijoada na laje em Paraisópolis.

Desta vez o destino era bem mais próximo à minha casa. Menos de dez quilômetros, uns 20 minutos de carro. Ao contrário de Itapecerica, Paraisópolis fica na mesma cidade; mas em muitos sentidos é um outro mundo, especialmente se comparado à vizinhança de burguesia e classe média alta.

Ali vive uma comunidade que cresceu com uma população de baixa renda e alta garra (era a favela que enchia de temores os vizinhos do Morumbi), por longo tempo esquecida pelo poder público, e hoje se afirmando com base em organizações comunitárias —também apoiadas por parceiros como o publicitário Marcello Barcelos, que me apresentou aos líderes locais.

Por ruelas algo tortuosas, chegamos num sábado ao bistrô e café Mãos de Maria. Ele fica na laje da sede da Associação de Moradores, dirigida por Gilson Rodrigues; e foi idealizado pela Associação das Mulheres de Paraisópolis, como forma de empoderar “as muitas Marias” da comunidade —como a própria presidente da Associação, Elizandra Cerqueira.

Um pouco ofegante depois de subir a ladeira e em seguida os lances de escada, mal respirando através da máscara, cheguei ao Mãos de Maria munido dos limões caipira-cubano-mexicanos. Era dia de feijoada, e pedi que fizessem minha caipirinha com os frutos valiosos que trazia nas mãos.

Os limões tinham a casca de um laranja fulgurante e um sumo abundante, sedoso e frutado que, como a polpa, lembrava as cores avermelhadas do pôr do sol no céu mais límpido que a pandemia, paradoxalmente, trouxe à cidade.

Fonte: Folha de S.Paulo