O (quase) nômade digital

Quando leio sobre os nômades digitais —que vivem na estrada e trabalham remotamente— lembro sempre uma fantasia juvenil, um sonho difuso que nunca movi uma palha para concretizar (afinal, era sonho): ser um escritor solto no mundo.

Meu devaneio era povoado de personagens autoexiladas em Paris no começo do século passado, tipo Ernest Hemingway (autor, por sinal, de “Paris é uma Festa”), aboletados na mesa de um café com seu caderninho, maço de cigarros e um copo de vinho, escrevendo livros e vendo a vida passar pela janela.

Via-me ali com taças de vinho ou Cognac, bloco de notas, e um lápis (claro que não era uma Bic) expelindo obras de arte sobre o papel, imitando “avant la lettre” o home office de hoje.

Nunca consegui me autoexilar em lugar nenhum, nem ser exilado (na época da ditadura militar, que o nefasto Bolsonaro sonha em reavivar, eu até dei motivos para isso, mas já num tempo em que, ao contrário, os exilados começariam a voltar para o Brasil). Na maré montante de viagens que me aguardava, porém, várias vezes simulei aquele momento romântico.

Embora não me tornando um nômade na vida, pois continuei fincado em São Paulo, passei a circular com frequência pelo Brasil e pelo mundo, e a fantasia de sentir-me meio desgarrado, produzindo em qualquer lugar, tornou-se uma realidade frequente, embora episódica. Com o bloco de notas sendo substituído pelo notebook.

No começo, a angústia era conseguir conexão de internet —que era via telefone, com fio e discada.

No Fondary, pequeno hotel de charme de Paris onde por anos me hospedei por ser pertinho da casa da querida Mari Hirata, meu refúgio era o jeitoso pátio interno onde eu podia conectar o modem e acessar a internet, uma maravilha —quando não ficava horas esperando a conexão funcionar, corroído pelo estresse da aproximação do horário fatal de mandar as colunas à Folha.

O minúsculo laptop Toshiba, pouco maior que um caderno de verdade, também estava comigo quando, na Provence francesa, fiquei sem conexão na casa alugada, e corri esbaforido (nada menos Provence, onde impera uma tranquilidade baiana) até o centro da cidadezinha de L’Isle-sur-la-Sorgue em busca de alguma lan-house que me salvasse.

De lá para cá a coisa mudou, com wi-fi chispando a atmosfera como oxigênio (ou carbono…) e computadores (celulares) do tamanho dos maços de cigarro de F. Scott Fitzgerald ou T.S. Eliot. Com a pandemia, a opção antes rara de trabalhar de qualquer lugar virou quase regra durante meses. O home office se impôs, o trabalho remoto começou a mostrar diversas vantagens.

Mas devagar com o andor. Embora minha vida seja de trabalhador nômade mesmo quando não viajo, não estou certo de que seja o melhor para qualquer profissão e função.

A quarentena mostrou que tecnicamente é possível trabalhar sem estar na sede da empresa, e longe dos colegas. Mas é bom não esquecer que é um sistema que facilita a escravização virtual, em que ninguém consegue nunca se desligar do trabalho. Além do mais, mesmo que não seja estritamente necessária, será que a proximidade não pode trazer ganhos profissionais e humanos?

Certas funções podem ser realizadas apenas com relações bilaterais por WhatsApp. Mas, um jovem profissional não amadurecerá melhor se, no local de trabalho, presenciar insights de um colega que passava ao acaso? As broncas de um experiente chefe corrigindo os erros de alguém na baia ao lado, uma conversa inesperada e inspiradora no intervalo do café?

Se você é viajante profissional, ok. Se não é, pense bem nas vantagens mas também nas desvantagens de se tornar um nômade na sua própria casa.

Fonte: Folha de S.Paulo