Os olhos gulosos de Antônio Maria na via Dutra

Por vários motivos, a coletânea de crônicas de Antonio Maria, pernambucano que ganhou o Rio de Janeiro até morrer prematuramente (mas não sem ter intensamente vivido) em 1964, me encantou. Estão no livro “Vento Vadio” (editora Todavia), lindamente desfiladas pelo organizador Guilherme Tauil.

Para quem não o conhece, vale a pena começar pelo começo, lendo a biografia serenamente cirúrgica desenhada por Tauil. Ele mostra não somente o jornalista mas também o compositor de obras-primas da música popular, o radialista esportivo, o diretor de TV (veículo que mal nascia), o boêmio inveterado, o amante inseguro.

Minhas emoções ao lê-lo foram várias. Mesmo porque meu pai, um retirante de Pernambuco como Maria, jornalista talentoso e aclamado como ele, e igualmente morto precocemente (e ainda mais jovem, um ano depois), fora seu colega no mesmo Rio de Janeiro, dividindo o mesmo ar morno, as mesmas boates nubladas, os mesmos amigos copiosos, alguns mesmos patrões trovejantes, e sabe-se lá o que mais.

Ler suas reminiscências de Pernambuco, inclusive da vida rural onde passava as férias, me traz uma nostalgia injustificada, já que ali nasci, tendo avós paternos vivendo no campo agreste, mas na capital entre os rios ou no sítio à beira do açude nunca vivi.

Ler seus relatos cariocas, terra onde meus pais se conheceram, também me transportou a uma infância em que ali morei, ainda iletrado e ingenuamente feliz antes da mudança definitiva para São Paulo.

Mas minhas memórias foram também capturadas por outra geografia, descrita na crônica “Guia Prático e Sentimental da Rio-São Paulo”. Ainda que escrita em 1953, antes que eu nascesse, ela descreve um trajeto pela via Dutra que anos mais tarde eu faria conduzido por meu pai, com a família toda a bordo.

No sentido oposto, era de São Paulo que saíamos em viagem. Demorado? Por que não tomar um avião? Não era somente pelo preço, na época mais alto que hoje.

Havia o prazer de dirigir. De ver o tempo e a paisagem correrem pela janela. Não era uma questão prática, de tempo. Muitos (Maria inclusive) se orgulhavam de fazer o trajeto em muito menos do que as seis horas regulamentares.

Mas, na crônica, ele não recomenda o feito, “porque perderia o melhor do passeio: as paradas”.

Enorme, glutão, ele passa então a descrever as delícias do caminho. O jantar em Resende, com seu “bife delicioso, feito na manteiga, com o molho do próprio sangue”, que ele teria apresentado a Rubem Braga, Millôr Fernandes, Dorival Caymmi.

Em Taubaté, onde as pessoas falam com seu “com o seu ‘R’ oloroso”, “as linguiças mais gostosas do mundo, fritas na hora”. Em São José dos Campos, uma galinha de arroz “em nada diferente” das de casa; e, em Jacareí, oferecidos à margem da estrada, seus famosos biscoitos.

Nunca olhei para a Dutra com estes olhos gulosos: na infância, íamos munidos de sanduíches de bife à milanesa preparados por minha mãe.

Mais velho, cruzava a estrada antes para percorrê-la que para usufruí-la.

Somente certa feita quis conhecer um restaurante (também hotel, à moda dos relais franceses) fincado próximo à divisa entre os dois estados. Chamava-se O Paturi, era famoso por seu pato com laranja (paturi é uma variedade desta ave), e ainda oferecia o pouso reconfortante aos viajantes.

O hotel ainda existe, em meio a enorme área verde, com lago e piscina; o restaurante fechou na pandemia. Ali cheguei a me hospedar, como quem circula por estradas da Bourgogne. Fazia frio, adequado para o cardápio francês, e para fazer ansiar pelo calor carioca que em poucas horas, sempre achávamos, nos receberia.

Fonte: Folha de S.Paulo