Quando o açougue vira joalheria, a barbárie está instalada

Papel era um negócio grande há 30 anos, quando fui aos Estados Unidos vadiar no esquema mochileiro-subempregado-filhinho-de-papai. Jornais e revistas vendiam centenas de milhares de cópias, até mesmo no Brasil.

As esquinas americanas eram tomadas por caixotes metálicos que eu nunca havia visto, cada um com um jornal diferente à venda. Muito me espantou que eles funcionassem assim: a pessoa depositava uma moeda que destrancava uma portinhola, abria e pegava o primeiro jornal de uma pilha.

Se quisesse, poderia pegar a pilha toda. Aquilo bugou minha cachola brasuca. Espírito de porco tem no mundo todo, como os gringos dão um mole desses?

Nos países ricos, os parques não têm cerca. O transporte público aposenta progressivamente as catracas.

Eles meio que confiam nos cidadãos. Não totalmente (e o brasileiro esperto-otário sempre descobre), porque fiscalizações esporádicas enquadram os gatunos por amostragem. De qualquer forma, é boa a vida sem catracas e cadeados.

Já o Brasil vive o fenômeno inverso. Agora deram para passar a chave na geladeira de carnes do supermercado.

O açougue virou joalheria.

– Por favor, quanto custa o medalhão de filé?

– Aqui está o nosso catálogo, senhor. Temos também picanha, mas a esta hora o cofre já está fechado. Amanhã poderemos lhe atender.

– Muito obrigado, não quero levar nada agora. Estou pesquisando algo para dar à minha mulher nas bodas de prata. Retorno se tiver interesse.

Tem tranca no banheiro do posto de gasolina, as roupas têm etiqueta magnética que apita, as prateleiras de uísque do mercado são cheias de caixas de papelão vazias. Solicitam autorização, em três cópias carbono, para liberar no estoque as pilhas AAA e os aparelhos de barbear com 41 lâminas.

O cidadão é um ladrão ou vândalo em potencial, isso em áreas ricas de população majoritariamente branca.

Se você é preto num bairro rico, será perseguido pelos seguranças; se é preto num bairro pobre, pode ser muito pior.

Vide o caso de Bruno e Ian, tio e sobrinho de Salvador, entregues pelos guardinhas do supermercado a uma quadrilha de milicianos, que os executou. Seu crime foi tentar furtar carne.

Bom… se tentam afanar a carne, faz sentido trancar a geladeira, não? Para o comerciante, pode até fazer. No quadro maior, a tranca é um símbolo do nosso retrocesso civilizatório. Um sintoma do mergulho cada vez mais profundo na barbárie.

Americanos e europeus não são melhores nem mais civilizados do que nós. Eles se acomodaram numa prosperidade relativamente recente –conquistada na base do trabuco e da pilhagem de outros povos.

A história mostra o quão tênue é esse equilíbrio. Qualquer sacudidela, lá vão eles saquear, roubar, depredar. Regridem à barbárie na guerra que sempre volta, nos desastres naturais recorrentes, em reação aos governantes impopulares.

O principal motor da selvageria é a fome. Ninguém rouba a carne do mercado por malandragem, por vício ou por esporte.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais. Acompanhe os posts do Instagram e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo

Marcações: