Racismo malpassado no churrasco de Páscoa

Mal aí por atrapalhar o feriadão da família brasileira com assuntos incômodos. O cardápio da Semana Santa 2022 é racismo malpassado.

O domingo de Páscoa, para os cristãos observantes, marca o retorno dos banquetes festivos à base de carne –depois dos 40 dias “peixetarianos” da Quaresma, em respeito ao martírio de Jesus.

Foi certamente para celebrar a Páscoa que alguém pediu orçamento de churrasco, para alimentar 50 pessoas no próximo domingo (17), a Tatiana Pretona –assadora profissional que atua em eventos carnívoros e festas particulares.

Tatiana respondeu ao pedido e passou alguns dias sem abrir as mensagens do Instagram. Quando voltou ao aplicativo, ela ficou anestesiada –palavra que repetiu várias vezes ao longo da conversa por telefone. A mensagem recusava os serviços de Pretona com o seguinte texto:

“Seu orçamento foi um dos melhores que recebemos, porém infelizmente não estaremos contratando seus serviços pois nosso cliente não gosta de pessoas da cor da sua pele.”

O tom pretensamente educado parece um arremate de sadismo no discurso racista escandaloso e inacreditável.

“Fiquei muitos dias sem dormir”, conta Pretona. “Aliás, ainda estou sem dormir.”

A churrasqueira não quer expor ou denunciar a autora da injúria (pelo “obrigada”, presume-se que seja uma mulher). “Não vou dar palco para essa gente”, declarou Tatiana nos stories (posts temporários) do Instagram.

A cautela de Pretona tem ainda outra razão. Depois que ela fotografou a mensagem ofensiva, a pessoa que lhe escreveu apagou o texto e bloqueou a churrasqueira no aplicativo. “Tinha medo de que pensassem que eu estava mentindo para me promover.”

Não conseguiu segurar. Publicou a captura de tela da resposta impublicável em sua própria conta. “Quer saber? Foda-se”, desabafou, “desculpe o palavrão”.

O ataque à churrasqueira negra diz um bocado sobre o mundo em geral, o Brasil em particular e, numa lupa ainda mais fechada, sobre a cultura “macha” e geralmente reacionária de churrasco, cerveja, rock pesado e motocicletas.

São raríssimas as mulheres nesse meio –as colegas Larissa Morales e Paula Labaki, Lígia Karazawa e a própria Tatiana são heroínas num ambiente inóspito. São raras também as pessoas pretas.

Mulheres pretas, então, podem ser contadas nos dedos de uma mão. A bem da verdade, eu só conheço a Pretona. Conheci nesta quinta-feira (14), aliás, quando um dono de hamburgueria me enviou o desabafo dela por mensagem direta.

“A sorte é que a pessoa rejeitou o orçamento. Se tivesse aceitado e falado essa coisa no meio do churrasco, a capoeira ia ser lá mesmo.”

Tatiana Pretona, mãe e moradora do Parque do Lago, nas profundezas meridionais da periferia paulistana, vive com a discriminação desde que nasceu. Enfiou-se num meio em que sempre foi corpo estranho e foi levando, calada e resignada, as “brincadeiras” racistas de que sempre foi vítima. Até esta semana.

“Cansei.”

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Fonte: Folha de S.Paulo

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