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Razões para não viajar

Tempo. Dinheiro. Cansaço. Vistos. Família. Trabalho. Língua. Medo de avião.

Cada um tem uma resposta diferente, ou várias delas, para a pergunta: “Por que você viaja menos do que gostaria?”.

Nos meus quase 57 anos posso afirmar que superei todas, menos uma: e se o lugar aonde quero ir oferecer um risco, talvez fatal, a minha saúde? Assim, tipo coronavírus!

Com exceção talvez da fobia de voar (dessa jamais padeci) driblei os obstáculos. Não nasci numa classe executiva, claro. Mas desde o meu primeiro salário oficial, nesta mesma Folha, me esforcei para juntar dinheiro para passagens baratas. Valia até nas Linhas Aéreas Paraguaias!

Esse era (e segue sendo) meu objetivo principal na vida: viajar. E todo meu foco está nisso. Troco minha agenda, renegocio folgas, picoto as férias, faço qualquer negócio para ter um tempo livre e sair!

Família e amigos também já me conhecem: se dou uma sumida, eles têm certeza de que estou feliz em algum lugar do mundo. E os vistos? Bem, nós brasileiros, muitas vezes sofremos com eles. Quando era bem mais jovem, lá pelos meus 20 anos, sonhava em ter um passaporte europeu —algo bastante difícil para um brasileiro como eu, fruto de várias gerações de brasileiros!

Nunca corri atrás dessa “dupla nacionalidade” e hoje então nem ligo mais.

Se um país estiver dificultando muito minha entrada só por conta da minha nacionalidade, talvez eu não queira tanto assim visitá-lo.

Mas aí chegamos ao item saúde. Nunca me senti ameaçado por pandemias. Aliás, no primeiro confronto que tive com uma delas, de Sars (síndrome respiratória aguda grave), no começo do século 21, entre conhecer a Tailândia e mudar de itinerário para um lugar mais “seguro”… “Bora para Bancoc!”.

Anos depois, uma nova onda de gripe suína, H1N1, quase ameaçou minha ida ao Butão. O problema não era o destino, mas as escalas que eu teria de fazer para chegar a Paros, onde fica o único aeroporto do país. Novamente, não titubeei. Confiante na minha boa saúde, segui viagem.

Mas agora estou de fato pensando em como o coronavírus pode interferir nas minhas curtas férias de maio. Talvez eu esteja mais velho e isso se reflita não na minha imunidade, mas no peso que dou para essas preocupações.

Os números crescentes atualizados com apavorante eficiência na internet também não colaboram, tantos os de contaminação quanto os das mortes. O começo da semana, inclusive, trouxe informações de pelo menos uma morte fora da China, nas Filipinas. Será que desta vez eu vou refazer os meus planos por causa de um vírus?

Provavelmente já corri riscos razoáveis de contaminação: comendo numa feira livre em Zanzibar (costa da África); experimentando frutas em Bagan (Mianmar); degustando sobremesas nas ruas de Old Delhi, bairro da capital indiana; matando a fome com a vendedora ambulante da rodoviária em Quito; dormindo ao lado de um carregamento de bodes na estrada para Timbuktu, no Mali; provando uma pele de porco num mercado em Macau (na época, território administrado por Portugal, hoje, oficialmente, região administrativa da China). 

Fiquei preocupado em cada uma dessas vezes? Não na hora, mas a culpa batia sempre no dia seguinte: será que tinha feito a coisa certa? 

Como você pode ver, eu estou aqui para contar essas histórias, logo…

Sobrevivi bravamente a esses percalços. Mas, pela primeira vez, hesito. 

O risco parece ser mesmo grande ou as companhias aéreas não teriam cancelado com tanta firmeza seus voos para cidades chinesas.

As autoridades mundiais de saúde dão alertas claros do perigo. Sem falar que, no caso de uma contaminação, da parte das autoridades que deveriam proteger os filhos de sua pátria, só posso contar com hesitação na hora de retirá-los de uma zona de perigo.

Não estou com medo. 

Muito menos me sentindo desamparado. Estou apenas em pausa. Observando com atenção. Mas confiante de que, até lá, eu possa passar pelo Japão antes das Olimpíadas e de lá… rumo ao desconhecido. Intrepidamente.

Fonte: Folha de S.Paulo