Sangue e tripas: viajantes buscam experiências para caçar, coletar e preparar comida

Houve época em que uma aula de culinária do tipo clássico, promovida num espaço bucólico e que ensinava a preparar uma refeição de três pratos, já atendia às expectativas.

Mas hoje isso já não é o bastante. Cursos que levam os alunos a botar a mão na massa com os ingredientes vêm ganhando popularidade com viajantes que procuram experiências culinárias que pareçam mais primitivas.

O que essas pessoas querem não é tanto preparar refogados nas colinas de Florença quanto moer os ingredientes de uma linguiça. Elas querem transparência em relação a onde e quando os produtos são colhidos e como obtê-los de modo a poder consumir menos gêneros alimentícios de origem desconhecida embalados em plástico.

Não há cifras precisas relativos a essa tendência, mas Emily Fitzroy, proprietária da agência de viagens Bellini Travel, especializada na Itália, diz que tem recebido mais clientes interessados em aprender uma habilidade culinária em suas férias. “Os clientes querem voltar das férias tendo aprendido algo novo”, ela disse. Entre as viagens especializadas que ela reservou recentemente está uma que envolve um mergulho em profundidade no mundo dos miúdos.

Outra operadora de viagens, Black Tomato, cria “momentos culinários” práticos que proporcionam às pessoas uma visão mais profunda das origens da comida, indo diretamente para a fonte. Uma possibilidade é passar uma tarde num veleiro tradicional nas ilhas Lofoten, da Noruega, onde os participantes pescam, limpam e preparam bacalhau, uma fonte crucial de renda na região.

O aventureiro, chef de cozinha e autor de livros de culinária Hank Shaw, agraciado com o prêmio James Beard, oferece caçadas culinárias de três dias de duração no Oklahoma através de sua empresa –Hunter, Angler, Gardener, Cook (Caçador, Pescador, Jardineiro, Cozinheiro)—e em parceria com Larry Robinson, da empresa Coastal Wings Guide Service. Além de caçadas, a experiência inclui aprender a esfolar, depenar e outros aspectos do preparo de animais de caça, incluindo aves aquáticas, de modo que os participantes possam prescindir de processadores comerciais. As expedições custam US$ 2.000 (o valor abrange a hospedagem, as caçadas e refeições preparadas por chefes), são anunciadas na newsletter de Hank Shaw, e as vagas geralmente esgotam em menos de 48 horas.

Minha própria busca por uma experiência alimentar mais profunda me levou a Nick Weston, cujas aulas de culinária na zona rural de Sussex, na Inglaterra, abrangem como talhar animais de caça e outras aventuras com alimentos silvestres.

Weston tem 41 anos e é um caçador-coletor dos tempos modernos. Ele estudou as culturas e a arqueologia mesolíticas na faculdade, trabalhou como chef freelancer, passou três meses no Pacífico Sul como “especialista em sobrevivência” para o reality show britânico “Shipwrecked” (uma versão britânica de “Survivor”) e então voltou para seu lugar de origem em Sussex para viver sem água corrente ou energia elétrica numa casa na árvore que ele próprio construiu de materiais reciclados, sobrevivendo com o que consegue caçar, pescar e colher na natureza.

Descrito em seu blog que posteriormente virou livro, “The Treehouse Diaries: How to Live Wild in the Woods”, o “bushcraft” –algo como artes do mato— ensinado por Weston atraiu o interesse de pessoas que almejam uma conexão com a natureza. Em 2011 ele criou uma escola de culinária, Hunter Gather Cook, e começou a oferecer cursos de um dia de duração sobre como retalhar animais de caça, coletar espécies vegetais comestíveis na natureza e acender fogueiras. As aulas eram dadas numa casa da árvore construída no meio do nada.

Quando meu marido e eu nos inscrevemos para um desses cursos, no verão passado (um curso particular, já que nossa agenda não coincidia com a agenda dos cursos coletivos), Weston já havia transferido sua sede para um celeiro de debulha do século 19, situado num ponto igualmente isolado. Começamos a manhã caminhando por uma trilha de cascalho gritando “hello?” enquanto procurávamos sinais de vida além dos furões que fugiam de nossa aproximação.

Passamos por uma porta e entramos num ambiente que misturava elementos do “hygge” dos restaurantes Soho House (paredes de tijolinhos expostos cobertas de placas vintage, um aquecedor a lenha bojudo e cobertores aconchegantes) com uma pitada de Contos dos Irmãos Grimm (facas, machadinhas e animais empalhados). A playlist carregada de Metallica intensificava o clima.

Começamos o curso trabalhando com pombos-torcazes.

Diante de uma mesa em que estavam expostos os instrumentos essenciais —tábuas de cortar, facas, baldes—, um membro da equipe de Weston que se apresentou como Chops nos disse onde e quando as aves (muito mais atraentes que os pombos de minha cidade natal, Chicago) foram abatidas e como a carne seria cozida (as coxas seriam fritas e o peito seria assado no forno), isso porque o modo como a ave será talhada depende de como se pretende cozinhá-la depois. “Vocês vão se orientar pela estrutura óssea da ave”, ele disse, explicando que usaríamos principalmente as mãos para separar a ave em pedaços.

Levantamos a plumagem cinza azulada para ter uma ideia da anatomia do pombo: asas, peito, esterno, pernas e cauda. Parecia tudo bem. Mas, por via das dúvidas, localizei uma saída, caso meu estômago se revoltasse quando as penas começassem a voar.

A depenagem foi fácil. Você puxa as penas para cima (no sentido contrário à direção que elas seguem naturalmente) com mais ou menos a mesma força que usaria para arrancar um fio solto de uma camiseta. Em seguida fizemos uma pequena incisão no peito e “soltamos a pele” com os dedos até deixar os peitos expostos. Sem enjoo até agora. Achei o exercício fascinante. Depois que arrancamos as pernas, cortamos a cabeça e as asas, a carne restante era semelhante a algo que se vê num açougue.

A retirada das vísceras foi mais desagradável. Mas, uma vez feita, colocamos as aves limpas sobre tábuas de cortar diferentes, também limpas, para inspecionar nosso trabalho e certificar que não havia danos, como ossos quebrados ou trauma decorrente dos tiros que mataram os pombos. Então a carne foi entregue aos chefs.

Minha curiosidade havia superado meu nojo, e eu estava vibrando.

O passo seguinte foram os coelhos. Cortar as pernas de um coelho não é trabalho para quem tem estômago delicado. Expulsei da cabeça qualquer ideia de “Pedro Coelho”, o filme de animação, enquanto tirei os pés, a cauda e a cabeça, para em seguida esfolar o animal, fazendo uma incisão na barriga, soltando a pele com as mãos e a arrancando. A área entre os ombros e as pernas traseiras do coelho é o lombo e contém os cortes mais macios, de modo que foi dela que cortamos os filés e a carne das ancas que fariam parte de nossa refeição.

Concluído o trabalho de açougueiro, trocamos as facas por cestos de jardinagem e saímos para colher milefólio, urtiga, azedinha e olmeira. Algumas dessas ervas também seriam incluídas em nossa refeição. O sul da Inglaterra é um paraíso de cogumelos comestíveis, mas infelizmente ainda não estava na época de colher as famosas trufas e os cantarelos da região.

Mais ou menos três horas tinham se passado, e uma bebida estimulante seria bem-vinda.

De volta à horta atrás do celeiro de debulha, nos serviram petiscos acompanhados de um coquetel “selvagem”: coquetéis de gim com urtiga colhida da natureza, que tomamos com um canudinho natural de caule de borragem.

“É aqui que a mágica acontece”, disse Weston, apontando para uma área escavada e forrada de palha para conter uma fogueira. Ao lado dela havia um forno de barro e um forno a lenha enorme.

Fiquei surpresa inicialmente pelo fato de um curso intitulado “Hunter Gather Cook” não envolver os participantes cozinhando a comida.

Mas entendi tudo quando me sentei para devorar um pão de massa azeda chamuscado, que praticamente implorava para ser mergulhado num camembert assado, molinho e polvilhado com trufas (os cães de Weston são treinados para farejar trufas). Tínhamos passado algumas horas de atividade intensa. Deixar o trabalho de cozinha a cargo da equipe de Weston coroava nossos esforços com um pouco de luxo.

O vinho correu solto quando chegaram os dois pratos seguintes: branca-ursina crespinha acompanhando perna de pombo frita e tartare de gamo defumado e uma casca de ovo de codorna salpicada abrigando sua gema amarelinha. Cantamos, acompanhando Nelly e Travis Tritt, enquanto os pratos continuavam a chegar: gaspacho com ervas frescas da horta, ostras defumadas frias perfumadas com milefólio e azedinha, filés de coelho acompanhando uma salada caesar, lombo grelhado de coelho recheado de peito de pombo envolto em pancetta.

Não era um bufê rústico variado —era um menu de degustação sério que narrava uma história de como os produtos locais e sazonais desse lugar específico se converteram no prato sofisticado à minha frente.

Os cursos de grupo têm um dia de duração e custam 100 libras britânicas por pessoa (R$ 630). Além do curso clássico, há dias de colaboração com o chef e cursos sazonais especiais que saem por entre 85 e 180 libras (R$ 530 a R $1.130).

Fonte: Folha de S.Paulo

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