São Paulo, capital nacional da mortadela

Um dia, na falta de coisa melhor para fazer, a vereança de São Paulo concedeu à cidade o título de “capital mundial da gastronomia”.

Tudo bem, ainda era o século passado. São Paulo recebia caravanas de ônibus com idosos de Bauru e Araraquara para jantar nas cantinas do Bixiga depois de ver uma comédia no teatro. Isso talvez tenha impressionado nossos vereadores.

Vamos e venhamos, a megalomania paulistana já soava ridícula na época. “Nova York não precisa se dizer capital da gastronomia”, espetou Percival Maricato, representante dos donos de restaurantes, num texto publicado pela Folha em 3 de setembro de 1997.

A realidade, que não havia sido consultada, se impôs implacável. Um quarto de século mais tarde, São Paulo se consolida como capital. A capital nacional do pão com mortadela.

Isso diz um bocado sobre nós. Diz algo que não é agradável de se ouvir. Numa cidade que oferece comida congolesa, haitiana, vietnamita, persa, boliviana, russa, camaronesa, egípcia, filipina, afegã, armênia, polonesa e indonésia, a maior atração gastronômica é um sanduíche de mortadela.

É quase meio quilo de mortadela socado entre duas frágeis metades de um pão francês. Tem gente –e não e pouca gente– que encara com um sorriso no rosto a muvuca do Mercadão para degustar tal iguaria.

Se o poder público não conseguiu emplacar a tíbia pretensão de capital gastronômica, o poder econômico trabalha com afinco para consolidar São Paulo como terra da mortadela.

O fabricante da marca mais vendida de mortadela inventou, na semana de aniversário da cidade, uma tal de mortangüela week ou coisa que o valha. Fez o maior forrobodó para ratificar, em solo paulistano, o recorde mundial de sanduíche de mortadela mais longo.

Afinal, o que seduz na mortadela do Mercadão? Não dá nem pra dizer que se trate de uma comida típica –o embutido é uma invenção da cidade de Bolonha, na Itália.

Tem um documentário argentino chamado “E il Cibo Va” (“E a Comida Vai”, em italiano), que mostra a transformação da dieta dos imigrantes da Itália em Buenos Aires e Nova York.

Acostumados à escassez de comida, os colonos se deslumbram com a abundância nas Américas. Expatriada, a culinária italiana enfia o pé na jaca. Abusa do queijo, exagera no molho, refestela-se de carne.

Algo semelhante ocorreu aqui em São Paulo, e aposto que a popularidade do monstro de mortadela do Mercadão se encaixa no fenômeno.

Com o agravante de que brasileiro adora macaquear americano: dá-lhe hambúrguer com 18 carnes, pizza de nove queijos, coxinha de dois quilos e refil infinito de refrigerante. Sintomático que Anthony Bourdain, chef porém gringo, tenha se encantado com o sanduba do Mercadão.

Se você, residente ou visitante, estiver por lá, pode bater aquela vontade de provar o sanduíche de mortadela.

Então, para seu próprio bem, siga este conselho: respire, saia, atravesse a rua da Cantareira e coma esfiha numa das biroscas árabes do mercado Kinjo Yamato. Vai por mim, é mil vezes melhor.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais. Acompanhe os posts do Instagram e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo

Marcações: