Selfies no museu

Descubro, lendo na The Economist, que os museus na China estão entupidos de jovens. Hordas, aparentemente: barulhentos, desordenados e, talvez mais preocupante, pouco interessados em arte.

O que estaria provocando essa invasão é um fenômeno bem recente conhecido por “wanghong” —algo que, segundo a revista, pode ser entendido como “viral” ou “fama da internet” (traduzo do original em inglês, já que meu mandarim anda enferrujado…).

Explico rapidamente: uma geração inteira está apreciando arte não exatamente pelo seu conteúdo, mas pela possibilidade de, ao usar um trabalho interessante como pano de fundo para sua selfie, o perfil do visitante viralizar.

Antes de julgar, confesse: você já fez isso! Se esteve, por exemplo, na mostra d’Os Gêmeos na Pinacoteca de São Paulo, não tem nem como negar.

Já me adianto: usei, sim, trabalhos incríveis que encontrei em museus e galerias da Europa para posts no Instagram. E, admito, escolhi trabalhos que pudessem chamar bastante atenção num universo tão volátil quanto o das redes sociais.

O mais recente exemplo que posso citar foi na exposição do grande Anselm Kiefer, no começo do ano, montada no Grand Palais Éphémère, no Campo de Marte de Paris, uma réplica da galeria original (Grand Palais) enquanto ela está sendo reformada.

Lá estava eu, todo pimpão, com um enorme avião dilapidado, uma espécie de marca registrada de Kiefer, que repousava dramaticamente ao fundo. Resultado: 27,2 mil visualizações!

Pensando bem, eu diria até que comecei bem antes de esse tipo de “wanghong” sequer existir.

Tenho selfies com corpos flutuando na exposição de Antony Gormley em 2019, na Royal Academy of Arts de Londres. Com o coração gigante de Jeff Koons na retrospectiva que ele ganhou no Centro Pompidou (Paris), em 2017. E com as formas petulantes de Anish Kapoor espalhadas pelo palácio de Versailles, também na França, em 2015.

Registros mais antigos? Matisse no MoMA de Nova York, no começo dos anos 90; o sol de Olafur Eliasson na Tate Modern, em 2003; Jenny Holzer na abertura do Guggenheim em Bilbao, na Espanha, em 2004; eu em 2008, apoiado na enorme abóbora de Yayoi Kusama, na Coleção Benesse, Naoshima, Japão.

Em minha defesa, vou logo dizendo que eu estava, sim, conectado com todos esses trabalhos. Apaixonado desde sempre por arte, fiz esses registros para celebrar a alegria de poder finalmente admirar aquelas obras de perto.

É verdade que, assim como a geração “wanghong” na China, eu queria também de certa maneira me exibir, mas mergulhando mesmo na arte que eu via. Nunca foi apenas um cenário.

Seria a minha experiência mais válida do que a dos “wanghongs”? Pelo que li na Economist, os museus não estão reclamando. As bilheterias estão gordas e os visitantes de fato interessados em arte não parecem se incomodar.

Já escrevi aqui mesmo sobre uma visita que fiz ao Davi de Michelangelo na Galeria de Belas Artes em Florença (Itália) em 2019, quando os turistas só pareciam interessados numa selfie colocando suas mãos na genitália da estátua. Vivência artística: zero.

Porém, como sugere a Economist, este talvez seja um jeito novo de visitar os museus. Se a relação com as criações humanas é superficial, menos mal. Pelo menos os turistas foram lá e viram aquilo.

Acho que mesmo um esbarrão com a arte já é importante. E aposto que nem que seja em um punhado de visitantes, esse encontro pode transformar ao menos uma fração de pensamento de quem o experimentou.

Quem sabe um dia até não seja isso, essa missão maior da arte, que viralize?

Fonte: Folha de S.Paulo

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