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Subir ao Auyantepui, na Venezuela, envolve dias de trekking e de rapel

Em meio a várias histórias de quem viaja de carro por aí, trago um relato de trekking de muitos dias para chegar ao Auyantepui, um dos muitos tepuis –formação ao estilo mesa– da Venezuela.

Quem nos conta a experiência é a leitora Beatriz Pianalto de Azevedo, que já escreveu ao blog sobre suas viagens a Guiné-Bissau e ao Butão. A última história dela, inclusive, também envolveu uma longa expedição, mas ao ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina.

Em tempos de coronavírus nossas viagens ficaram mais restritas. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email [email protected].

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Início da expedição

A Venezuela detém a maioria dos tepuis do planeta: 115, sendo que a maioria se localiza no Parque Nacional Canaima, destacando-se o Auyantepui, Kukenan e Roraima. O restante dos 140 estão distribuídos pela África, Austrália, Colômbia, Uruguai, e, no Brasil, os mais belos exemplares estão no Jalapão (TO), Chapada das Mesas (MA) e Livramento (RS). 

Decidida a enfrentar o Auyantepui (o Roraima conhecera em 2011), contrato uma agência venezuelana e me mando no feriado de Carnaval de 2016 para Caracas, onde conheço os demais membros da expedição, oito europeus. De Caracas voamos a Puerto Ordaz e dia seguinte vamos de busão a Ciudad Bolivar, onde nos esperam três avionetas do tempo de Saint-Exupéry. 

Uma das avionetas que levaram o grupo de Ciudad Bolívar à aldeia pemone Uruyen (Arquivo pessoal)

Aqui já começa a aventura na balouçante aeronave. Após 50 minutos de voo, a vegetação rasteira de savana cede lugar à espessa vegetação da floresta amazônica. De repente, na paisagem plana, os tepuis começam a aflorar, espocando tal qual pipoca no solo. Majestoso é pouco para descrever a belezura desse tipo de elevação, em forma de mesa, com paredes verticais, cuja altura varia de 2 mil a 2.900 metros. 

A avioneta nos deixa em Uruyen, uma das tantas aldeias indígenas pemones, existentes no parque, onde pernoitamos. A paisagem que se desfruta de qualquer lugar donde se esteja é a da magnífica face sudeste do Auyantepui e de suas encostas revestidas de vegetação. 

Com altas muralhas formando recortes variados, sua superfície alcança 700 km², motivo por que é de longe o maior de todos os tepuis existente no planeta. A expedição conta, além dos três guias, com 18 pemones que transportam, nas costas, em cestas de vime bagagens e equipamentos. 

1º dia de trekking

Deixamos a aldeia Uruyen e após curta pernada saímos da savana, iniciando a ascensão do Auyan. Circundando a sua face sul, há três extensos platôs rochosos, formando como que gigantescos degraus que antecedem o topo. 

Hoje subiremos até a 1ª plataforma. Percorremos uma mata relativamente cerrada e desembocamos no espaço aberto do cobiçado platô, após ardida subida. A recompensa é a encantadora visão de pedras cobertas por musgos e líquens, arbustos, flores, sombra e água fresca. 

Almoçamos no alto da plataforma tendo aos nossos pés o vale Kamarata. O caminho então se torna moleza: suave descida sucedida por trecho plano até o acampamento Guayaraca (1.011 m). Com a escuridão já quase instalada, tem início o show de luzes dos pirilampos.

2º dia de trekking

A trilha plana alterna trechos de savanas e bosques. Dissipada a cerração, o sol brilha no céu. Mimetizada entre raízes e folhas, uma enorme cascavel, toda enrodilhada, de sentinela no meio da trilha. Dum riacho recolhemos água para enfrentar a subida até o topo da 2ª plataforma, quase uma escalaminhada, donde se tem uma visão estupenda da avermelhada face sul do Auyantepui.  

A ascensão, no meio da estreita picada, aberta na floresta, é inclinada para caramba. O guinchar dos macacos é perfeitamente audível, assemelhando-se, pasmem, a rajadas de vento. A subida continua pois temos de alcançar a metade da 3ª plataforma onde acamparemos. 

Vencidas outras tantas escalaminhadas, feitas com cuidado, porque há largas fendas entre as pedras, chegamos enfim ao acampamento El Peñon (1.870 m). No final da tarde, o sol ao se pôr colore de dourado a parede do tepui. Após a janta, maior silêncio no acampamento, apenas o movimento dos pirilampos inundando a mata de inúmeros pontos luminosos. 

3º dia de trekking

Hoje é dia de alcançarmos o topo do Auyan. A base da parede sul do tepui é pedra sobre pedra cercada de mata por todos os lados, daí por que a caminhada é pura escalaminhada. Em retrospecto, a subida ao topo do Roraima foi moleza! A neblina dá uma pausa e permite que se avistem os gigantescos totens de pedra que guardam a trilha. 

A partir do paredão, sete ascensos exigem cordas até o topo. Um mundo de indescritível beleza atravessa blocos gigantescos de rocha entremeados por exuberante vegetação. Quando a névoa se dissipa um pouco, se avistam espaços vazios entre os blocos de arenito. Num desses, apelidado de Callejón de las Palomas, se escuta o arrulhar de centenas de pombas que fazem do buracão seu ninho. 

A fatigante subida entre as colossais torres acaba de repente. Já estamos no topo, avisa Fred, o líder dos guias. Refeita da emoção, percebo duas muralhas dispostas perpendicularmente uma à outra.  A que importa é a 2ª, que dá acesso ao ponto donde desceremos, rapelando, um paredão de 1 mil metros. 

Um mundo totalmente inédito o topo do tepui. Ao contrário do Roraima, surpreende pela quantidade de bosques e pela coloração mais clara dos maciços rochosos. Almoçamos à beira do rio Naranja e ao chegarmos ao acampamento El Oso (2.165 m), no meio da tarde, o céu está desanuviado. 

À noite, quando as caprichosas nuvens permitem, se vêem zilhões de estrelas no firmamento. 

4º dia de trekking

Nosso próximo destino é o acampamento Dragon. Inicialmente caminhamos por uma superfície rochosa plana. Apenas dois trepa-pedras envolvem certas habilidades para transpô-los. 

O céu ora ensolarado ora nublado. Entramos numa mata fechada, cheia de sinuosas curvas, um sobe e desce ininterrupto conhecida como labirinto. A floresta é linda com arbustos e árvores hospedando em seus troncos variedades de bromélias. 

De repente, numa dobra da mata, uma visão extasiante: cercado por margens cuja areia é rosada, as douradas águas do rio Churun, onde nos banhamos. A poucas centenas de metros o maciço paredão da 2ª muralha. 

Chegamos ao acampamento Dragon (1.765 m), no meio da tarde. Da minha barraca, escuto o conversê dos guias mas nem eles tampouco os pemones fazem frente à tagarelice dos belgas, imbatíveis na charla! 

5º dia de trekking

Como de costume, o dia amanhece nublado. Escuto a 20 metros da barraca o barulhinho gostoso da correnteza do Churun. A passarada assanhada não para de trinar. Deve estar, no mínimo, curiosa com nossa movimentação, afinal Auyantepui não é point turístico bombado como o Roraima. 

A escalaminhada em paredão exposto até o topo da 2ª muralha mostra-se bem ríspida. Mas a beleza do mundo encantado das pedras e dos musgos suplanta qualquer cansaço. 

Quando terminamos a subida e alcançamos o topo da 2ª muralha, as dificuldades não param. Tudo porque temos pela frente quilômetros de terreno fofo coberto de areia e material orgânico, seguindo-se um solo pantanoso quando entramos em úmidos bosques. 

Após hora e meia de pernada, aleluia, chegamos a uma baixada onde se encontra o acampamento Neblina (1.820 m). 

6º dia de trekking

Eeebaaa, hoje as subidas nem são lá muito puxadas. O espesso matagal de samambaias acaba num terreno coberto por lajes, livre de vegetação. Após breve descanso, a pegada é encarar o interior dum bosque escuro, atravancado de troncos e galhos de árvores caídos no chão desnivelado que alterna baixadas e subidas. 

Tudo muito úmido, tornando o solo em certos trechos uma meleca pantanosa. No início da tarde, já estamos no acampamento Kerepa, fincado à margem do rio de mesmo nome.  Por causa do mau tempo, fico na barraca lendo. 

7º dia de trekking

Embora o trajeto seja curto, dura é a distância até o acampamento Salto Angel neste último dia de caminhada. Semelhante a de ontem, a trilha se dá no mesmo tipo de bosque cerrado, escuro e úmido, com subidas e descidas lamacentas. 

Louquíssimo o trecho de selva onde espessos musgos de coloração ferruginosa recobrem troncos e galhos de árvores. De repente, nos livramos do matagal e entramos num campo coberto de gramíneas, vencendo sem esforço uma curta ladeira, após o que alcançamos, enfim, o acampamento Salto Angel, montado também à margem do rio Kerepa. 

À tardinha, nos acomodamos ao redor da fogueira, providencialmente acesa pelos porteadores, pois um arzinho gelado paira no topo do tepui. À noite, reina o maior silêncio no acampamento, já que amanhã levantamos às 4 horas para enfrentar o restante da aventura. 

Os dois dias de rapeis 

A partir de hoje, nossa pernada será diferente: enfrentaremos dois dias de rapeis numa parede de quase mil metros, pouco distante do Santo Angel, terminando a aventura no rio Churun. 

Nos seis primeiros rapeis a descida se dá em parede quase desnuda de vegetação. Já os 7º e o 8º rapeis são feitos em meio a arbustos. Para chegar ao ponto do 6º rapel, somos becapeados a improvisado corrimão de cordas antes de percorrermos os 20 metros do estreito platô, limitado à esquerda pelo despenhadeiro de 700 metros de altura. 

Embora este rapel seja o pior de todos, com 90 metros de exaustiva descida, sou recompensada quando, num lance negativo, a corda me faz girar 180º, permitindo que eu dê as costas à parede e veja aos meus pés o cenário sensacional do canyon del Diablo cortado pelo rio Churun. 

Quase no final da tarde, chego ao acampamento Cueva, um largo platô encimado por um baita teto de rocha onde bivaqueamos. Deitada, aprecio o sol iluminar a parede leste do tepui, acentuando a coloração rósea de sua rocha. 

Um dos vários momentos de rapel na expedição (Arquivo pessoal)

Após a emocionante descida de 475 metros, eis diante de meus olhos, a poucos metros, o Salto Angel! 

Faltando ainda 500 metros de baixada, dia seguinte, realizamos outros sete rapeis, todos em meio ao matagal. Cada vez mais perto do leito do rio Churun, já escuto seu rumorejar. 

Não tinha ideia de que a aparente verticalidade da parede -vista de fora- particularmente nestes 500 metros finais, comportasse tantas plataformas, algumas com capacidade de acomodar 20 e tantos viventes, bem como trechos onde se pode caminhar sem necessidade de rapel. 

Terminados os rapeis, uma caminhada numa baixada hiper íngreme e resvaladiça até o mirador do Salto Angel. Chegamos à tardinha a Isla Ratón onde pernoitamos num dos muitos refúgios ali existentes. 

Construída à margem esquerda do rio Churun, na rústica habitação, uma dezena de redes serve como cama. Após a janta, deitada na rede e embalada pelo toin toin toin das gotas de chuva tamborilando no teto de zinco, penso cá com os meus botões: terminou o que era doce, quem desceu o Salto Angel se arregalou!

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Aviso aos passageiros 1: Se você gosta de aventura e altura, pode se interessar pelo relato do alpinista e escritor Thomaz Brandolin, que contou como foi escalar o Monte McKinley ou Denali, o ponto mais alto da América do Norte

Aviso aos passageiros 2: O Check-in também tem o relato do escritor Marcelo Lemos, que subiu ao topo do Kilimanjaro, o ponto mais alto da África

Fonte: Folha de S.Paulo