Tomate, o cara malvado da inflação da comida

Este centenário jornal virou saco de pancada por causa do seguinte enunciado, usado em chamadas e num post da Folha no Twitter: “Tomate é o vilão do prato-feito e vale-refeição dura menos dias”. A frase se refere a uma boa matéria sobre a inflação dos alimentos básicos, publicada em Economia na terça (10), e cujo título foi posteriormente alterado.

O mau humor dos internautas acusa a imprensa –antes da Folha, o portal G1 atribuiu ao tomate o papel de vilão dos preços– de fazer vista grossa para a responsabilidade do governo na escalada da inflação. Passar pano, como se diz por aí, para Bolsonaro e Guedes.

Há pelo menos três questões envolvidas no episódio. Têm peso enorme na equação os vícios de linguagem que contaminam as redações. Entra também a incompreensão dos subgêneros do texto jornalístico.

Completa o quadro a má vontade de grupos de leitores com a imprensa profissional. O sarrafo vem de gente de qualquer orientação ideológica –neste caso, os queixosos são de esquerda.

Comecemos pelo mais importante. Os vacilos nossos, dos jornalistas. É genial chamar o tomate de vilão? Não, pelo contrário: é uma fórmula puída, esgotada, de criatividade tíbia, um clichê que sai no automático.

No jargão das redações, é aquilo que se convencionou chamar de “muleta”: uma expressão que quase todo redator usa para preencher espaços, sem pensar no tamanho do lugar-comum. Como chamar de “affair” os rolos amorosos das celebridades, para dar outro exemplo.

Falando nisso, olha os “vilões” na galeria fotográfica abaixo. Aparentemente, a batata é o novo tomate.

O enunciado infeliz, como o do tomate malvado, alimenta de razão a má vontade dos críticos da imprensa. Vários deles, por sinal, outros jornalistas que já não têm vínculos com os grandes grupos de comunicação.

Essas pessoas sabem que a nem a Folha nem o G1 atribuem ao tomate culpa ativa na inflação dos alimentos. Elas sabem que se trata de uma figura de linguagem para dizer que o preço do tomate foi o que mais subiu dentre os componentes do prato-feito – arroz, feijão, carne, frango, ovo, batata e salada.

Os reclamantes cobram uma posição mais crítica do jornal ao noticiar os preços absurdos da comida. Será que deveríamos? Aí entra a discussão dos subgêneros do jornalismo.

Um texto jornalístico pode ser informativo, opinativo, analítico ou até literário, com híbridos de todos os tipos. A reportagem do tomate é 100% informativa, nela até caberia alguma análise –mas, em hipótese nenhuma, opinião.

Há outros espaços, e muitos, para a emissão de opiniões na Folha. Este aqui é um deles. Nem todos hão de concordar com essas opiniões, ainda bem.

Enfim, fica o aprendizado da bagunça que uma palavra furreca pode causar. “Vilão”, gracinha fácil na formulação de títulos, possui uma carga acusatória que passa batido para o jornalista… mas não para o leitor.

Uma pena. A matéria do pê-efe expõe com números e didatismo cristalino a alta devastadora dos preços no almoço do trabalhador de baixa renda –um recorte sagaz e empático com o sofrimento da população.

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Fonte: Folha de S.Paulo