Viajante conta como foi subir montanhas em Uganda e ver o curso do rio Nilo

A África é o sonho de consumo de muito viajante. Há vários países pouco conhecidos pelos brasileiros e muita coisa pra ver: cultura, gastronomia, vida animal, arquitetura…

O leitor Marcelo Lemos é um felizardo, porque já foi até a Tanzânia para escalar o monte Kilimanjaro, o ponto mais alto da África —ele inclusive já dividiu a experiência com a gente.

Agora, o brasileiro relata como foi a viagem por Uganda, em que subiu os 5.109 metros de altitude do Pico Margherita, ponto culminante do Rwenzori e terceiro mais alto da África.

Em sua viagem, ele e a esposa, Bruna, passaram até pelo local onde o rio Nilo deixa o lago Vitória e segue seu enorme curso pelo continente.

Você fez alguma viagem legal e acha que vale compartilhar o seu relato? Escreva para o blog Check-in pelo email [email protected].

*

Uganda está localizada no coração da África. Verdade, verifique sua posição no mapa do continente! A fartura de água e consequente fertilidade de suas terras em área tropical lhe renderam o título de “pérola da África”, atestando sua riqueza no passado e que poderia permanecer no presente, não fosse a ditadura degradante imposta na década de 1970 pelo tirano Idi Amin.

O país abriga montanhas nevadas, vulcões inativos com cavernas impressionantes, vários lagos, é cortado pelas centenas de quilômetros iniciais do rio Nilo. Sua fauna ostenta pássaros multicoloridos, a rara cegonha-bico-de-sapato, os grandes mamíferos da savana, além de oferecer uma hospitalidade sem abordagem agressiva ao turista.

Todos estes qualificadores fizeram com que eu classificasse Uganda como um país em que é obrigatória a visita para os aventureiros e amantes de atividades outdoor. Na verdade, tudo “começou” a partir da continuidade de um projeto de ascensão às maiores montanhas na África.

A primeira parte deste projeto que deu origem ao meu livro “História de Savanas e Glaciares Africanos” (Ed. Literar – Petrópolis) está no meu relato sobre os montes Kilimanjaro e Meru, na Tanzânia. Em Uganda, percorri, na companhia de minha esposa Bruna, os montes Elgon e Rwenzori, além de realizar um safári no Parque Nacional das Cataratas Murchison em janeiro de 2015.

Como aclimatação para os 5.109 metros de altitude do Pico Margherita, ponto culminante do Rwenzori e terceiro mais alto da África, realizamos a ascensão ao monte Elgon. Com 4.321 metros de altitude, é apontado como o vulcão mais antigo da África. Aparentemente, já possuiu altitude maior que o Kilimanjaro, mas a atuação da erosão por milhões de anos fez com que muito material que constituía o vulcão fosse carreado para sua base, alargando-o e transformando-se em um dos vulcões com maior área ocupada por sua base no planeta.

Antes, porém, aproveitando a conexão que o passeio teria em vários momentos com o rio Nilo, no nosso deslocamento para o Elgon aproveitamos para visitar o “ponto zero” na cidade de Jinja. Assim é chamado o local onde o Nilo deixa o lago Vitória e inicia sua jornada de mais de 6.500 km até o mar Mediterrâneo.

O monte Elgon está na fronteira de Uganda com o Quênia, sendo que seu ponto culminante está no primeiro. Não adianta pedir ao guia para atravessar a fronteira. Não há um serviço de imigração no cume! O diferencial deste vulcão é possuir grandes cavernas, como a Tutum, situada no lado ugandense, e a Kitum, no lado queniano. Esta é o único local no continente que recebe elefantes em busca de sal que eles extraem de suas paredes.

Foram quatro dias para a travessia do vulcão, sendo dois para a subida pela rota Sasa. No primeiro, após muitos solavancos no carro da empresa contratada, saímos do vilarejo de Bumasola, próximo à cidade de Mbale. Iniciamos a caminhada por plantações de cebola, mandioca e matoke (uma fruta muito semelhante à banana, mas sua casca se mantém verde quando madura) e atingimos o primeiro acampamento a 3.500 metros de altitude.

No dia seguinte, partimos para o cume. Foi a celebração do meu aniversário de 41 anos no dia 13 de janeiro, enquanto contemplávamos a grandiosidade do vulcão. Sua cratera já está deformada, segundo o guia, pela ação do degelo de neve acumulada com o fim da última era glacial. O peso exercido pela água levou à ruptura de uma seção da cratera conhecida como Garganta Suam, que gerou o extravasamento das águas.

A descida foi feita pela rota Sipi e, após atravessarmos parte da cratera do vulcão, a longa descida nos conduziu à caverna Tutum, próxima do último acampamento. É a maior caverna do monte Elgon e possui uma cachoeira na entrada, cuja cortina d’água forma a porta de entrada.

Rwenzori

Com este choque de realidade que demos em nossos corpos, 77 km percorridos em quatro dias, retornamos para Kampala para um dia de descanso e seguirmos para o outro lado do país. Era hora de conhecermos o mundo místico do Rwenzori.

Já antes de Cristo, navegadores gregos reportaram seus encontros com habitantes do litoral de Azânia, como a África era então conhecida, e sobre lagos e montanhas nevadas no interior do continente. Isto levou Ptolomeu a especular sobre a nascente do rio Nilo sendo abastecida pelas neves destes lugares misteriosos, algo que seria comprovado em parte quase dois mil anos depois. De fato, o Rwenzori fornece a nascente mais alta de parte das águas que alimentam o Nilo. Mas até obter esta conclusão, a região foi alvo de inúmeras viagens exploratórias insanas de europeus ao longo do século 19.

Rwenzori é uma palavra que designa “o produtor de chuva”. É a região do planeta que rivaliza com a floresta amazônica —chove torrencialmente 300 dias por ano. A trégua ocorre em janeiro e fevereiro, razão pela qual escolhi o final de janeiro para a ascensão pela rota Kilembe. O início ocorre na vila de mesmo nome. Foram gastos oito dias, ida e volta, para os 73 km.

Não há outro local no planeta que eu possa comparar com o Rwenzori. É uma cadeia de montanhas com menos de 1.000 km2. Pequena, mas grandiosa na altitude e peculiaridade da fauna e flora. Você entra em outro mundo. Rios caudalosos exigindo travessias por pinguelas; minhocas com mais de meio metro de comprimento; você caminha em terreno que treme com os passos de pessoas cinco metros a sua frente; em outros pontos você é tragado por uma espécie de “lama movediça”; há momentos que as raízes expostas das árvores são o melhor ponto de apoio; você pisa em rochas de cristais, em musgos macios como se formassem um tapete, em neve dos glaciares… O Rwenzori é único!

Cada dia é diferente. Mas no terceiro dia é que de fato contemplamos a impressionante cadeia de montanhas nos envolvendo, como se estivéssemos no centro de um anfiteatro ao nos aproximarmos do lago Bugata.

No quarto dia finalmente avistamos nosso objetivo: o monte Stanley estava oculto por outros picos. Ele abriga os dois picos mais altos de toda a cadeia, o Margherita (5.109 metros) e o Alexandra (5.098 metros). Neste dia, a sensação de isolamento com o mundo foi total.

O sexto dia reservou a arrancada para o cume, em que caminhamos pelos dois maiores glaciares do monte Stanley para galgarmos o ponto culminante com o nascer do sol. Estávamos no ponto mais alto de Uganda e de onde partiam as águas mais remotas do rio Nilo. Quantos exploradores não gostariam de estar contemplando nossa visão e confirmando uma suposição milenar das nascentes do Nilo…

As Cataratas Murchison ficam no parque nacional de mesmo nome, em Uganda (Arquivo pessoal)

Finalizamos nosso passeio ainda contemplando as água do Nilo, mas de forma diferente. Navegando por elas, em busca da sua cachoeira mais poderosa em Uganda: as Cataratas Murchison, situadas no parque nacional de mesmo nome.

Realizamos um safári por dois dias nesta região. O período de seca não permitiu ver muitos felinos e os herbívoros lutavam por melhores pastagens. Após duas horas subindo o rio e avistando crocodilos, hipopótamos e elefantes, além de pássaros coloridos, vimos as cataratas. O efeito causado pelo estrangulamento do rio imposto pelo terreno leva as águas a um poderoso turbilhonamento como em um liquidificador natural.

Dicas: 

– Para os interessados, sugiro entrar em contato com o atencioso guia-proprietário da empresa que eu utilizei, a Cheetah Safaris Uganda (Robert Ntale – [email protected]). Seus serviços são muito profissionais;

– O inglês é amplamente falado em virtude dos tempos do domínio inglês no século passado;

– Gorjetas para guias e carregadores são uma praxe ao fim dos passeios;

– Para o Rwenzori, o recomendável são os meses de janeiro ou fevereiro. Mesmo assim, é normal a ocorrência de chuvas. O Elgon pode ser percorrido em qualquer época do ano;

– O visto pode ser obtido na chegada.

*

Aviso aos passageiros 1: O jornal New York Times divulga anualmente uma lista com 52 destinos que valem visitar. Em 2020, Uganda é citada porque a “capital dos primatas e o paraíso dos pássaros estão mais acessíveis”.

Aviso aos passageiros 2: Caso você esteja programando uma viagem para a África, na Namíbia é possível acampar em dunas, dormir com zebras e acordar ao som de hipopótamos, além de ver baobás gigantescos

Fonte: Folha de S.Paulo