Viajantes negros nos EUA relatam discriminação ao alugar casas em plataformas

Os serviços de compartilhamento de casas como Airbnb e Vrbo são comercializados como plataformas de compartilhamento, comunidade e alegria. Seus anúncios mostram hóspedes de diversas origens étnicas reunidos alegremente em ambientes ensolarados, parecendo se sentir em casa —ou, melhor ainda, de férias.

Mas algumas pessoas não brancas –principalmente os hóspedes negros– dizem que, apesar das políticas e parcerias definidas pelas plataformas de compartilhamento de residências, eles ainda enfrentam discriminação ao reservar ou se hospedar em aluguéis de férias. Eles ficam frustrados com o que chamam de falta de compreensão e confiabilidade.

Em um relatório divulgado no início de dezembro, o Airbnb reconheceu os problemas e ofereceu os primeiros dados públicos sobre as medidas tomadas para reduzir as disparidades raciais, inclusive removendo alguns fatores humanos do processo de reserva.

Laura Murphy, especialista em direitos civis que dirigiu o escritório legislativo em Washington da União Americana de Liberdades Civis e hoje é consultora sênior do Airbnb, escreveu a introdução do relatório. Ele revela um pouco do que foi aprendido com o Projeto Lighthouse, um esforço iniciado publicamente em 2020 pelo Airbnb e o Color of Change (Cor da Mudança), um grupo antidiscriminação na internet, para usar dados internos da companhia para medir padrões de discriminação.

O relatório se concentra no que a empresa chama de taxa de sucesso de reservas, uma medida da frequência com que os hóspedes conseguem fazer as reservas que desejam no Airbnb. Pesquisas anteriores mostraram que hóspedes considerados negros pelos anfitriões têm mais probabilidade de ter seus pedidos de reserva rejeitados do que aqueles percebidos como brancos.

Desde 2016, a empresa exige que todos os hóspedes e anfitriões aceitem seu Compromisso da Comunidade de “concordar em tratar uns aos outros com respeito e sem julgamento ou preconceito” e seguir uma política de não discriminação.

Em 2018, o Airbnb parou de mostrar as fotos de hóspedes aos anfitriões antes que a reserva fosse confirmada. Essa mudança “aumentou ligeiramente” a taxa na qual os hóspedes negros conseguem reservar acomodações, disse o relatório. Permitir que mais hóspedes usem o recurso chamado Reserva Instantânea, que habilita usuários individuais a fazerem reservas sem a aprovação específica do anfitrião, também foi eficaz.

Ainda assim, os hóspedes considerados brancos (os usuários do Airbnb não são solicitados a identificar sua raça; o Projeto Lighthouse usa dados que determinam a raça que alguém poderia associar a um primeiro nome e uma foto de perfil para medir uma possível discriminação) conseguem a locação que desejam em 94,1% das vezes. Os locatários asiáticos e latinos têm taxas de êxito um pouco menores, enquanto os hóspedes percebidos como negros obtêm o que escolheram 91,4% das vezes. Os dados não medem a discriminação baseada em gênero ou orientação sexual.

Para superar essa diferença, a empresa disse que estava testando mudanças nas páginas de perfil de hóspedes e anfitriões; permitindo que mais pessoas usem a Reserva Instantânea; permitindo que usuários que não sejam os titulares de contas principais recebam avaliações, para acumular mais comentários sobre hóspedes negros (que tendem a ser mais novos da plataforma); e reforçando sua capacidade de auditar recusas de reservas.

“Este não é o começo da nossa jornada”, disse Janaye Ingram, diretora de programas e engajamento de parceiros comunitários do Airbnb. “Também não é o fim da nossa jornada. Estamos entusiasmados por estar nesta jornada de combate à discriminação. Isso não tem lugar em nossa plataforma e em nossa comunidade.”

O relatório é mais vago sobre o que a empresa faz para supervisionar anfitriões e hóspedes que demonstram preconceito depois que uma casa é reservada. Vários hóspedes negros se queixaram nas redes sociais de serem maltratados; o The New York Times entrevistou alguns que fizeram relatos sobre o que consideram racismo dos anfitriões.

Viagem familiar interrompida

Tecsia Evans, uma psicóloga de Oakland, na Califórnia, que é negra, viajou para Nova Orleans em julho de 2021 por quatro noites com o marido, a mãe e dois filhos pequenos. Antes de reservar no Airbnb, ela disse à anfitriã que a viagem era para comemorar os 75 anos de sua mãe e confirmou que eles poderiam receber familiares.

Na primeira noite, a anfitriã, que morava no térreo do prédio de duas unidades, reclamou que os filhos de Evans fizeram barulho às 23h. No dia seguinte, na plataforma, ela disse que gostaria do horário de silêncio a partir das 22h. As comunicações foram educadas.

No terceiro dia, a família de Evans encontrou a anfitriã. Eles tiveram uma breve conversa durante a qual, segundo Evans, ela sugeriu que as restrições fossem incluídas nas regras da casa para que os hóspedes as conhecessem com antecedência.

Naquela noite, Evans convidou suas três irmãs e dois sobrinhos para jantar. Às 21h30, o Airbnb entrou em contato com ela: a família teria que ir embora. A empresa não explicou o motivo e, segundo Evans, ignorou seus pedidos para falar com um supervisor. Mais tarde, o Airbnb disse a Evans que, segundo a anfitriã, ela havia dado uma festa, o que era contra as regras. A empresa reembolsou uma noite da estadia para Evans e suspendeu sua conta por 90 dias.

Evans, que acredita que a anfitriã a tratou injustamente por ela ser negra, disse que ligou para a empresa mais de 30 vezes e mandou uma carta ao CEO do Airbnb, Brian Chesky. Ela enviou fotos de seu jantar para dez pessoas e de um grande mapa emoldurado de “plantations” [sistema de exploração agrícola de monocultura], pendurado sobre o sofá; ela relata que o obra celebrava a escravidão e indicava a mentalidade da anfitriã.

A anfitriã não respondeu a pedidos de entrevista. Em uma conversa acalorada no aplicativo do Airbnb no dia seguinte ao despejo de Evans, a anfitriã disse a ela: “Alguns dos meus melhores e mais queridos amigos são afro-americanos, gays e lésbicas, e até uma pessoa que fez transição. Isso não tem absolutamente nada a ver com a cor da sua ou da minha pele”.

Em diversos momentos, o Airbnb disse a Evans que estava investigando –ou que havia investigado e apoiado a anfitriã. Ela insistiu e, seis meses depois, recebeu um reembolso total.

Posteriormente, a empresa proibiu “a promoção de recursos relacionados à escravidão como ponto de venda de uma estadia”.

Ben Breit, diretor global de comunicações de confiança do Airbnb, disse que a empresa levou a reclamação de Evans a sério, efetuou uma ampla investigação e tomou medidas disciplinares contra a anfitriã. Evans foi informada em setembro de que a anfitriã recebeu um aviso.

No relatório, o Airbnb disse que recentemente tornou mais fácil para os hóspedes que se sentem discriminados reservar uma acomodação alternativa por meio da linha de segurança 24 horas da empresa, parte do programa AirCover. Os agentes da linha de segurança “oferecerão ajuda para encontrar um local alternativo imediatamente e poderão reembolsar ou remarcar o hóspede, conforme ele preferir”, diz o relatório. A empresa também disse que está facilitando para os hóspedes denunciar discriminação antes ou depois de uma viagem.

Este ano, o Airbnb também criou um guia online, “Como ser um anfitrião ainda mais inclusivo”, que aborda questões como preconceito implícito. Nele, o psicólogo social Robert W. Livingston, da Universidade Harvard, explica que as pessoas são mais propensas a discriminar, mesmo inconscientemente, em situações ambíguas –nas quais podem atribuir suas decisões a outros fatores além da raça.

Airbnb não é a única

O Airbnb é a maior empresa do setor de aluguéis por temporada, mas não é a única que luta contra a discriminação. A Vrbo, que faz parte do Grupo Expedia, também tomou medidas para combater o preconceito, incluindo educar os anfitriões, criar campanhas de marketing mais diversificadas e inclusivas e exigir que palavras como “plantation” sejam usadas sem celebrar a escravidão. Cada oferta de casa tem um link “Relatar este imóvel”, que permite aos usuários identificar problemas, que são analisados e encaminhados para a equipe de confiança e segurança da Vrbo, quando apropriado, disse a empresa.

“Removemos fotos e sobrenomes dos perfis, coisas que estudos anteriores mostraram que podem contribuir para o comportamento discriminatório”, disse Melanie Fish, chefe de relações públicas globais da Expedia Group Brands. “Temos uma equipe de confiança e segurança que trabalha em tempo integral para erradicar comportamentos discriminatórios e também reagir quando hóspedes e anfitriões denunciam maus comportamentos.”

Mesmo assim, em abril de 2021, Dallas e Shirley Smith, que são negros, disseram que enfrentaram racismo quando reservaram um apartamento em Montgomery, no Alabama, por um fim de semana para comemorar seu 55º aniversário de casamento. A Vrbo não exige que os hóspedes tenham uma foto de perfil. Quando os Smith chegaram e pediram ao anfitrião o código da porta de entrada, ele disse que eles deviam ir embora porque o apartamento fora alugado para outra pessoa. Dallas Smith apontou que parecia estar vazio.

“Ele disse: ‘Não posso alugar para você'”, antes de desligar, lembrou Smith, 80, ex-funcionário do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Os Smith acreditam que quando o anfitrião viu que eram negros mudou de ideia sobre a locação. O anfitrião não pôde ser contatado para comentar.

Os Smith não são estranhos ao racismo. Viajando pelo sul dos Estados Unidos na década de 1960, eles embalaram uma caixa de sapatos com comida e escolheram apenas cadeias de hotéis e postos de gasolina que adotavam políticas antidiscriminatórias. Mas desde então quase não sofreram preconceito em suas viagens para 54 países e 50 estados americanos.

“Isto meio que nos fez retroceder 50 anos”, disse Smith.

A filha dos Smith ligou para a Vrbo e foi informada de que a empresa iria investigar a situação e que ela deveria ligar de volta em um dia de semana; não se ofereceu para remarcar de seus pais, disse ela. Os Smith terminaram a viagem de comemoração mais cedo. A Vrbo logo devolveu o dinheiro sem uma explicação ou pedido de desculpas, disseram eles.

A empresa investiga reclamações em caminhos paralelos, disse Fish, conectando-se com anfitriões e hóspedes para tentar determinar o que aconteceu, mas primeiro cuida dos hóspedes, instalando-os em um local onde se sintam seguros. Ao contrário do que a filha dos Smith lembra, a empresa afirma que lhes ofereceu uma acomodação alternativa, que recusaram.

“Definitivamente, levamos a sério qualquer relato de discriminação”, disse Fish. “Uma experiência ruim significa que o problema não foi eliminado.”

A Vrbo diz que menos de 1% das ligações de clientes que recebe a cada ano envolvem discriminação.

Fonte: Folha de S.Paulo