Vida longa à salsicha do rei!

Após a morte de Elizabeth 2ª, a atenção do mundo se voltou para o primogênito Charles. Mais especificamente, para as peculiares mãos do novo rei da Inglaterra –com uma dezena de dedos túrgidos, roliços e avermelhados.

É o que se chama jocosamente, nos países de língua inglesa, de “sausage fingers”. A imprensa brasileira, esta Folha inclusa, especulou as razões de sua Majestade ostentar “dedos de salsicha”. Não é a melhor tradução.

A palavra inglesa “sausage” se aplica tanto à salsicha quanto à linguiça. Para os anglófonos, as duas pertencem à mesma categoria de embutidos.

Em português do Brasil, “salsicha” diz respeito ao embutido cozido, feito com uma massa de carne processada até se tornar uma pasta lisa, uniforme. O resto é tudo linguiça.

Quando um inglês ou americano diz apenas “sausage”, ele geralmente se refere à linguiça. São linguiças os “dedinhos” que um açougue da Nova Zelândia pôs à venda para homenagear Charles 3º.

Para falar especificamente de salsichas, os forasteiros costumam usar as expressões “hot-dog”, “wiener” ou “frankfurter”.

A diferença entre salsicha e linguiça vai além da perfumaria semântica. É um falso cognato –palavra que induz à tradução errada– que criou um hábito singular no Brasil.

Em todo o território nacional, hotéis turísticos e de negócios servem salsichas ao molho de tomate no bufê de café da manhã. Eles acham que é esse o costume dos gringos. Tentam agradar aos hóspedes estrangeiros com hot-dog de festa infantil.

Só que a “sausage” que os americanos comem ao desjejum é linguiça ou algo mais ou menos semelhante –pois o tempero não lembra em nada a toscana do churrasco.

Os turistas ficam confusos com nosso cachorro-quente matinal. Comem, gostam, mas não entendem patavina. Brasileiros enchem o prato e se acham internacionais pra caramba.

Esse lapso na tradução é razoavelmente comum quando se quer reproduzir uma receita estrangeira sem conhecê-la na origem.

Numa madrugada de muitos anos atrás, eu e um colega entramos no último bar aberto do casco antiguo de Sevilha. Só nós e o dono da bodega –que em espanhol significa “vinícola”, mas em português é uma birosca mesmo.

O bar tinha uma garrafa de cachaça, algo incomum fora do Brasil naqueles tempos. Abordamos o taberneiro. Ele despertou da letargia para servir com entusiasmo os forasteiros inesperados.

“Faço uma excelente caipirinha”, disse o espanhol. Nós trucamos e esmurramos o balcão de mogno: “Manda duas”.

Recebemos dois copos com um líquido marrom-escuro e umas rodelas de limão-siciliano. Que diacho foi isso, cabrón? O andaluz havia lido em algum lugar que a caipirinha era feita com açúcar de cana –e o único açúcar de cana que ele encontrou era mascavo.

Voltando às mãozinhas reais: apesar da tradução imprecisa, a palavra “salsicha” também descreve bem os dedos de Charles 3º. Alguém, no velho oeste das redes sociais, cravou “dedos de mandioquinha”. Maldade.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais. Acompanhe os posts do Instagram e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo

Marcações: