A mulher pioneira da vacinação que foi esquecida pela história

  • Tom Solomon
  • The Conversation*

Lady Mary Wortley Montagu,

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Lady Mary Wortley Montagu baseou seus experimentos na observação de uma técnica usada por mulheres turcas para proteger suas crianças da varíola

O notável progresso atingido pela imunização contra a covid-19 chamou a atenção do mundo para o brilhante papel das vacinas.

Muitos conhecem a história da descoberta da vacinação contra a varíola por Edward Jenner em Gloucestershire, na Inglaterra, cerca de 250 anos atrás. Mas poucas pessoas ouviram falar de Lady Mary Wortley Montagu – a socialite que, com seus experimentos pioneiros de inoculação, definiu as bases para a descoberta de Jenner, mas cuja contribuição foi quase totalmente esquecida.

Este ano marca o 300° aniversário dos seus extraordinários experimentos com seres humanos e oferece uma ocasião oportuna para analisar sua notável contribuição para a saúde pública.

Nascida Mary Pierrepont em 1689, ela era uma mulher vivaz e obstinada, autora de cartas e poemas, que detinha ideias progressistas sobre o papel das mulheres na sociedade. Para evitar um casamento arranjado, ela fugiu de casa com 23 anos de idade e casou-se com Edward Wortley Montagu, neto do primeiro Conde de Sandwich.

Em 1716, Edward tornou-se embaixador inglês em Istambul (ou Constantinopla, como se chamava na época), capital do Império Turco-Otomano. Foi dali que Wortley Montagu escreveu descrições vivas da vida no oriente, especialmente das mulheres turcas, cujas roupas, estilo de vida e tradições a intrigavam.

Mas a mais notável dessas descrições foi o método usado pelas mulheres turcas para inoculação contra a varíola.

Havia muito tempo, observava-se que as pessoas somente contraíam essa temida doença uma vez. Se elas sobrevivessem, ficariam imunes pelo resto de suas vidas.

Para não correr o risco de uma infecção natural com alta taxa de mortalidade, as mulheres turcas mais idosas buscavam induzir um caso suave nas crianças com o que elas chamavam de “enxerto”.

A varíola causa bolhas e cascas sobre a pele das pessoas afligidas pela doença. As mulheres retiravam o pus da bolha de um paciente, faziam um corte no braço da pessoa que elas desejam proteger e esfregavam o pus naquele corte. Isso normalmente gerava sintomas suaves, seguidos por proteção por toda a vida.

“Existem algumas mulheres idosas [aqui]”, escreveu Wortley Montagu, “que se ocupam de realizar a operação todos os anos, no outono… milhares passam por isso… [e] não há nenhum caso de alguém que tenha morrido no processo.”

A própria Wortley Montagu havia sobrevivido à varíola, mas ficado com cicatrizes no rosto. O seu irmão havia morrido com a doença. Ela estava empenhada em proteger seu jovem filho contra a varíola e convenceu o cirurgião da embaixada a inoculá-lo.

“O garoto foi enxertado na última terça-feira”, escreveu ela em uma carta ao seu marido, “e está agora cantando e brincando, muito impaciente à espera do jantar”.

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A varíola provoca feridas na pele e, antes da vacinação, podia ser fatal

Wortley Montagu decidiu “trazer essa invenção útil para que seja adotada na Inglaterra”.

Depois de dois anos, ela voltou para casa. Em 1721, houve uma epidemia de varíola e Wortley Montagu pediu ao médico da embaixada, que havia viajado para Londres com ela, que enxertasse sua filha, que ainda não havia sido inoculada.

Receoso pela sua reputação, o médico pediu a diversos médicos que observassem o procedimento como testemunhas. Em abril de 1721, ele inoculou a jovem Mary Alice – foi a primeira vez em que o procedimento foi realizado na Grã-Bretanha.

Embora os observadores tivessem ficado impressionados, outros ficaram céticos a respeito dessa prática exótica e perigosa.

Wortley Montagu e sua filha visitaram residências de pessoas afetadas pela varíola para demonstrar que Mary Alice estava protegida. Mas muitos médicos permaneciam cautelosos. Não seria um procedimento arriscado? E se ele causasse doença grave ou fatal?

Morte ou inoculação

Em agosto de 1721, foi realizado um experimento extraordinário na prisão Newgate, em Londres, que ajudou a convencer as pessoas sobre os benefícios da inoculação contra a varíola.

Ofereceu-se a diversos prisioneiros condenados à morte a possibilidade de substituir sua pena pela inoculação com a varíola, concedendo-lhes a liberdade se sobrevivessem. Todos eles aceitaram a oferta – e viveram para contar a história.

Para provar que a imunização realmente os protegeu contra a doença, uma das mulheres prisioneiras foi enviada para cuidar de um jovem com varíola, dormindo no mesmo espaço que ele todas as noites por seis semanas – e não ficou doente.

Embora a inoculação permanecesse uma prática controversa, com certa oposição médica e religiosa, esse experimento na prisão fortaleceu muito a campanha para a “variolação”, como o procedimento ficou conhecido.

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Hospital para tratar doentes da varíola em Londres; procedimento levado ao país por Lady Mary salvou milhares de vidas

A princesa de Gales, amiga de Wortley Montagu, ficou convencida e fez com que seus próprios filhos fossem inoculados. A realeza do restante da Europa seguiu seus passos, bem como a classe alta da região da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, onde a varíola estava se espalhando.

Embora surgissem ocasionalmente casos de doença grave após a inoculação, e às vezes fatal, o procedimento salvou milhares de vidas. A contribuição de Wortley Montagu foi celebrada, entre outros, pelo poeta francês Voltaire, e a inoculação tornou-se um ponto de convergência para o Iluminismo.

Setenta e cinco anos mais tarde, o médico inglês Edward Jenner, que havia sido inoculado quando criança, levou o processo adiante. Ele percebeu que as pessoas que haviam sofrido de varíola bovina – uma doença similar que atinge as vacas, mas é muito suave em seres humanos – tornavam-se imunes à varíola humana.

Por isso, Jenner injetou material de varíola bovina nas pessoas e comprovou que injetar varíola bovina utilizando a abordagem de variolação de Wortley Montagu era eficaz contra a varíola humana.

Comprovou-se assim a segurança da vacinação – termo derivado da palavra latina vacca que passou a designar o procedimento de Jenner -, que foi então adotada mundialmente. Jenner recebeu muitos prêmios e homenagens e seu trabalho acabou por levar à erradicação da varíola em 1976.

Todos os estudantes de medicina em qualquer parte do mundo aprendem sobre Jenner – e o seu retrato está exposto no Colégio Real de Medicina, em Londres. Até Blossom, a vaca que forneceu o material de varíola bovina original para o experimento de Jenner, é lembrada. Seu couro está guardado na Faculdade de Medicina do Hospital St. George e há um retrato dela no Colégio Real de Patologia.

Já Wortley Montagu, cujos esforços pioneiros estabeleceram as bases para os experimentos de Jenner, foi esquecida. Só nos resta imaginar se o seu trabalho seria lembrado se ela fosse um homem médico e não uma mulher socialite. Mas, agora, 300 anos depois, o Colégio Real de Medicina de Londres está estudando a forma mais apropriada de reconhecer sua contribuição.

*Tom Solomon é diretor da Unidade de Pesquisas de Proteção à Saúde em Infecções Emergentes e Zoonóticas do Instituto Nacional de Pesquisas em Saúde (NIHR, na sigla em inglês) e professor de neurologia da Universidade de Liverpool, no Reino Unido.

Este artigo de opinião foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado sob licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês).

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Fonte: BBC

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