Boko Haram: o sequestro de meninas que comoveu o mundo

Campanha pelas meninas de Chibok

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A campanha pela libertação das meninas de Chibok, na Nigéria, mobilizou redes sociais e governos

Maio de 2014, Casa Branca, Washington DC: a primeira-dama Michelle Obama segura uma folha de papel, diante da câmera, com uma mensagem simples: “Tragam de volta nossas meninas”. Em frente à mensagem, uma “hashtag”, o sinal gráfico adotado pela rede social Twitter e que passou a simbolizar temas e campanhas na World Wide Web. A hashtag #bringbackourgirls (#tragamdevoltanossasmeninas) era promovida pela mulher do presidente dos Estados Unidos três semanas depois que 276 garotas foram sequestradas pelo grupo jihadista Boko Haram na cidade de Chibok, na Nigéria.

Além de Michelle, inúmeros políticos e celebridades abraçaram a causa nas redes sociais e em eventos em vários países, numa campanha internacional de alcance e rapidez nunca vistos até então.

A mobilização levou ao conhecimento do mundo um problema que os nigerianos já enfrentavam havia anos.

Formado em 2002, o Boko Haram combatia uma guerra contra o poder central na Nigéria com a intenção de estabelecer um controle islâmico sobre o Estado de Borno, no nordeste do país.

A realidade do combate ao Boko Haram era muito mais complexa que a campanha na internet, e demorou dois anos para que o grupo libertasse pouco mais de 100 meninas.

Até agosto de 2021, outras 112 jovens de Chibok ainda eram mantidas pelo grupo, que continuava sequestrando crianças para usar em sua campanha de violência, responsável por causar milhares de mortes deixar milhões desabrigados na região.

Maior economia, grandes problemas

A Nigéria tem a maior economia da África. Oitavo maior exportador de petróleo do mundo, o país tem um PIB (Produto Interno Bruto) de US$ 448 bilhões, segundo dados do Banco Mundial para 2019.

O valor é 28% maior que o da segunda economia do continente, a da África do Sul, com US$ 351 bilhões, e 48% a mais que a terceira, do Egito, com US$ 303 bilhões.

A Nigéria, porém, tem também a maior população africana, com 201 milhões em 2019, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas) – o dobro da egípcia e mais de três vezes a sul-africana.

O PIB per capita nigeriano, apesar de acima da média das nações da África subsaariana, é um dos mais baixos entre os grandes do continente – apenas US$ 2.230, 25% do brasileiro.

Esse quadro faz da Nigéria um país com grandes desafios e problemas sociais, entre eles separatismo e violência política.

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A Nigéria é o oitavo maior exportador de petróleo, riqueza que não impede muitos dos problemas sociais do país

Além de populosa, a Nigéria é dividida religiosa e culturalmente, com um norte majoritariamente muçulmano, o sul do país predominantemente cristão e uma faixa de maior mistura na parte central.

Essas diferenças ficaram mais expostas a partir de 1999, quando a Nigéria saiu de um período de 15 anos de regime militar.

Com as novas liberdades oferecidas pelo novo governo democrático, o Estado de Zamfara, localizado no norte e de maioria muçulmana, decidiu adotar a lei islâmica, ou sharia, como sistema de justiça paralelo à Justiça civil. Em 27 de janeiro de 2000, a sharia tornou-se lei em Zamfara.

Outros 11 Estados do norte nigeriano, de maioria muçulmana, seguiram seu exemplo – incluindo Borno, no nordeste, que nos anos seguintes se tornaria o centro de uma onda de violência de cunho religioso. Em 2002, na cidade de Maiduguri, no Estado de Borno, Mohammed Yusuf fundou uma organização com dois objetivos centrais: combater o modelo de educação ocidental e lutar pela adoção da lei islâmica em toda a Nigéria.

Originalmente sem um nome oficial, o grupo acabou conhecido como Boko Haram, que significa “a educação ocidental está proibida”.

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O Estado de Borno, no nordeste da Nigéria, tornou-se centro da violência islamista do Boko Haram

Em 2008, o serviço da BBC News em hausa – língua predominante do nordeste da Nigéria – entrevistou Yusuf, então com 39 anos, numa conversa que revelou em grande medida seu extremismo.

Ele argumentou que a educação ocidental era contrária a crenças islâmicas e deu alguns exemplos. “Como a chuva. Nós acreditamos que seja uma criação de Deus em vez de uma evaporação causada pelo sol, que condensa e se transforma em chuva.” Yusuf ainda criticou a ideia de que a Terra é redonda e o darwinismo, a teoria da evolução das espécies.

Nos primeiros anos, o apelo do grupo cresceu entre jovens de comunidades muito pobres, e suas atividades concentraram-se em ensinamentos islâmicos. Até que o Boko Haram passou a adquirir armamentos e organizar ataques típicos de guerrilha.

Em julho de 2009, lançou um levante contra postos policiais, repartições públicas e igrejas em Borno, com ações também nos Estados de Yobe e Kano.

Mais de 300 pessoas foram mortas – a maioria militantes do grupo. Detido durante o levante, Mohammed Yusuf foi morto pela polícia a tiros horas depois – provavelmente executado sumariamente.

Nessa época, o Boko Haram ainda era considerado por especialistas relativamente inofensivo para o Estado nigeriano.

Segundo a reportagem da BBC de 2009, muitos no país viam o grupo como uma reunião de “loucos” e referiam-se à organização como “Taliban”, usando o novo do grupo afegão.

“Eles não precisam ser levados tão a sério, precisam apenas ser monitorados”, disse à BBC na época o professor Patrick Wilmot.

Yusuf foi substituído por seu vice, Abubakar Shekau, que reorganizou o grupo e passou a comandar uma série de ataques a posições do governo, igrejas, postos policiais e do Exército no nordeste do país, além de assassinatos de políticos.

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O líder do Boko Haram, Abubakar Shekau, que substituiu o fundador do grupo e aumentou seus ataques

Em maio de 2011, logo após a posse do novo presidente, Goodluck Jonathan, uma série de novos ataques mostrou que o grupo havia se infiltrado no Exército e na polícia nigerianos.

As operações se expandiram, e no mesmo ano a organização matou 18 pessoas numa explosão suicida contra a sede da ONU na capital, Abuja.

As forças de segurança nigerianas intensificaram sua resposta, em meio a denúncias de que cometiam abusos contra civis – o Boko Haram havia estabelecido uma presença significativa na população local. “Se as massas não gostassem de nós, elas já teriam nos exposto”, disse ao jornal britânico The Guardian um porta-voz do grupo, Abu Qaqa.

O Boko Haram também passou a cruzar a fronteira nigeriana, com ataques e confrontos registrados em Camarões, no Chade e no Níger.

Suas principais ações, no entanto, continuavam ocorrendo no Estado de Borno. Em fevereiro de 2014, o grupo atacou a vila de Konduga e matou dezenas de pessoas – testemunhas disseram que as ruas ficaram tomadas por corpos das vítimas.

Como informou a BBC News na época, “várias vilas na área em torno de Maiduguri, capital do Estado, têm sido atacadas nos últimos meses”.

A duas horas e meia de carro de Maiduguri, fica a cidade de Chibok. Ali, em 2014, numa escola de segundo grau do governo, centenas de garotas adolescentes estudavam sem imaginar o perigo que corriam.

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O Boko Haram matou dezenas e queimou casas num ataque à vila de Konduga, em 2014

Sequestro e conversão

O dia 14 de abril de 2014 mudou para sempre a vida das alunas da escola de Chibok. Às 23h, dezenas de homens armados do Boko Haram invadiram a área do estabelecimento.

As meninas ouviram tiros do lado de fora e foram tiradas de seus dormitórios. “Eles disseram que eram do nosso Exército e estavam ali para nos proteger”, disse uma das moças no documentário Nigeria’s Stolen Daughters, co-produção das redes BBC e HBO.

“Eles disseram para fazermos uma fila e sairmos pelo portão. Algumas de nós disseram que não iriam, e eles falaram ‘Se vocês não forem, nós vamos atirar em vocês.”

Outra moça relatou: “Eles então falaram, ‘Vamos queimar os dormitórios’. E a gente disse, ‘O quê? Soldados queimando os dormitórios?’ Aí eles disseram que não eram soldados, eles eram Boko Haram.”

Ao todo 276 jovens, em sua maioria de 16 anos a 18 anos de idade e que cursavam o último ano do ensino secundário, foram levadas pelos militantes.

Nas semanas e meses seguintes, ao menos 57 delas acabaram conseguindo escapar, algumas na própria noite do sequestro, reduzindo o número em poder do Boko Haram a pouco mais de 200.

Três delas, Lami, Maria e Hajara, contaram à equipe do serviço da BBC News em hausa detalhes do ataque e de como conseguiram se libertar de seus captores.

Segundo elas, enquanto o prédio da escola era tomado pelo fogo, as estudantes eram colocadas dentro de veículos do grupo.

“Quando entramos no veículo, minha amiga me disse, ‘Será que a gente não deveria pular agora, para tentar escapar?’ Eu disse para ela que o melhor seria o carro tombar, e os nossos corpos serem levados de volta para casa.”

As duas acabaram saltando do caminhão. “Depois que pulamos, começamos a correr. Havia muita poeira na estrada, e eles não conseguiam nos ver. Estávamos correndo descalças.”

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As meninas sequestradas foram exibidas num vídeo do Boko Haram, em que eram forçadas a recitar o Alcorão

Outra disse ter pensado em fazer a mesma coisa. “Uma garota me disse, ‘Eles vão atirar em você, se você fizer isso’. Eu chorava e rezava até chegarmos ao acampamento.” Nesse momento, surgiu uma oportunidade de fugir. “Quando nós chegamos, era por volta da meia-noite. Algumas das garotas estavam cansadas e queriam deitar, mas eu não podia me deitar. Eu disse à minha amiga, ‘A gente tem que ir’.”

Elas começaram a correr e ouviram alguns dos homens dizerem, “Peguem essas meninas!” Elas continuaram correndo. “Se eles vieram atrás da gente ou não, não sabemos.” Uma delas disse que demorou duas semanas até que ela pudesse ter forças para fica de pé. “Quando eu vi novamente meus irmãos, eu caí no chão, chorando. Eu agradeci a Deus, e é isso que eu faço até hoje, todos os dias. E eu não me esqueci das outras meninas, que continuam nas mãos daquela gente.”

O ataque levou à mobilização de familiares e da sociedade civil nigeriana. Duas semanas depois do sequestro, a organização local de direitos humanos Forum do Povo Borno-Yobe disse ter recebido informações de que garotas estavam sendo vendidas por US$ 12 a integrantes do Boko Haram como esposas – e casamento forçados estavam sendo realizados.

A entidade dizia ainda que, segundo moradores de vilarejos locais, parte delas havia sido levada para fora do país, para o Chade e Camarões.

Em 5 de maio, três semanas após o sequestro, a primeira confirmação do destino das estudantes. Em um vídeo, o líder do Boko Haram, Abubakar Shekau, confirmava que elas foram tomadas e estavam sob o poder do grupo.

“Eu venderei as mulheres no mercado, por Allah”, afirmou.

No dia seguinte, chegou a notícia de que outras oito meninas, com idades entre 12 e 15 anos, haviam sido sequestradas pelo grupo na vila de Warabe, também no Estado de Borno.

Dias depois, em um novo vídeo enviado pelo Boko Haram ao governo nigeriano, cerca de 130 das 276 garotas foram exibidas, todas cobertas em vestimentas de tradição muçulmana local, com apenas seus rostos à mostra.

No vídeo, elas eram obrigadas a recitar trechos do Alcorão, o livro sagrado do Islã. Grande parte delas era de cristãs, que estavam sendo convertidas à força à religião muçulmana.

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A campanha pela libertação das estudantes começou logo depois do sequestro, com protestos na Nigéria

As meninas de Chibok não foram as primeiras nem as últimas tomadas pelo Boko Haram, que usava crianças sequestradas de vilarejos do norte da Nigéria para a detonação de bombas em atentados suicidas.

Mas o destaque que conseguiram com essa ação lhes permitiu pensar em obter ganhos políticos mais significativos.

Apesar do caráter religioso do sequestro, com conversões forçadas, o Boko Haram tentou buscar um objetivo mais prático: a troca das meninas por integrantes do grupo mantidos presos pelo governo.

Essa possibilidade, porém, era descartada pelas autoridades, como disse à BBC News o então ministro da Justiça nigeriano, Abba Moro: “No que depender deste governo, a opção de uma troca de cidadãs inocentes por pessoas que pegaram em armas contra o país certamente não está na mesa”.

Na época, o correspondente da BBC News John Simpson esteve em Borno e na cidade de Maiduguri para mostrar como a região havia sido dominada em grande medida pelo Boko Haram.

“Toda esta parte da Nigéria é território do Boko Haram”, disse Simpson, que foi com soldados do Exército à cidade de Gamboru, que fora atacada pelo grupo dias antes.

“Eles chegaram às 13h30. Nós contamos centenas de carros queimados, o Boko Haram não queria que ninguém os seguisse. E eles massacraram 375 pessoas, algo que praticamente não foi notado pelo resto do mundo.”

O mundo começava a se movimentar. Segundo o presidente Barack Obama, uma equipe dos Estados Unidos havia sido enviada ao país africano para “tentar identificar onde essas garotas possam estar”.

Dias antes, o secretário de Estado, John Kerry, disse que havia conversado com o presidente Goodluck Jonathan, que havia aceitado a ajuda e participação americana.

“Nós continuamos profundamente preocupados com o estado dessas jovens garotas e queremos oferecer qualquer assistência possível para ajudar a obter seu retorno seguro a suas famílias”, disse Kerry.

Reino Unido, França e China também passaram a colaborar com as autoridades nigerianas.

“Este é um ato de pura maldade. Uniu pessoas por todo o planeta para ficar ao lado da Nigéria para ajudar a encontrar essas crianças e devolvê-las a seus país”, disse o então primeiro-ministro britânico, David Cameron. “Esta não é apenas uma questão nigeriana, é uma questão global.”

Campanha internacional

Nos dias que se seguiram ao sequestro, o governo do presidente Jonathan foi muito criticado por sua suposta lentidão em agir.

Crescia, porém, rapidamente na sociedade nigeriana um sentimento de indignação e revolta com o desaparecimento das meninas.

Nove dias após o ataque à escola, essa indignação foi resumida em quatro palavras. Em 23 de abril, num discurso em Port Harcourt, cidade no sul do país que em 2014 era a Capital Mundial do Livro da Unesco – órgão da ONU para educação e cultura -, Obiageli Ezekwesili conclamou as autoridades para que buscassem as meninas.

A expressão que ela usou, “bring back our girls”, foi usada com uma hashtag pela primeira vez no mesmo dia, no Twitter, pelo advogado nigeriano Ibrahim M. Abdullahi. “Yes #BringBackOurDaughters #BringBackOurGirls declared @obyezeks and all people at Port Harcourt World Book Capital 2014” – em português, “Sim, #tragamdevoltanossasfilhas #tragamdevoltanossasmeninas declarou @obyezeks e todo o povo de Port Harcourt Capital Mundial do Livro 2014”.

Horas mais tarde, a própria Ezekswesili publicou um tweet repetindo #bringbackourgirls. A hashtag tornou-se símbolo da campanha pela libertação das estudantes.

Na capital da Nigéria, Abuja, manifestantes reuniam-se diariamente ao ar livre, ao lado de um cartaz mostrando a hashtag e dizendo “Rescue Our Chibok Girls” – Resgatem as nossas meninas de Chibok.

Após duas semanas, a hashtag já havia sido usada 1,3 milhão de vezes, e ao final da terceira esse número chegaria a 3 milhões.

Crédito, Twitter/MIchelle Obama

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Em maio de 2014, a então primeira-dama americana, Michelle Obama, aderiu à campanha usando a hashtag

A hashtag espalhou-se pelos corredores do poder, da mídia e do mundo das artes. Um nome de peso, cuja história de vida era semelhante à das meninas de Chibok, logo aderiu à campanha: a paquistanesa Malala Yousafzai. Em 2012, aos 15 anos de idade, Malala sobrevivera a um atentado do grupo Taliban contra sua vida, devido a sua campanha em favor da educação de meninas no Paquistão.

Em 4 de maio, seu Fundo Malala publicou no Twitter: “#Malala se solidariza com nigerianos e pessoas de todos os lugares exigindo uma atitude para #BringBackOurGirls”.

Uma foto em preto e branco mostrava Malala segurando uma folha de papel com os dizeres #BringBackOurGirls.

No mesmo dia a senadora Hillary Clinton tuitou a hashtag, e três dias depois, a mensagem veio da Casa Branca.

Às 22h03 do dia 7 de maio, a então primeira-dama americana, Michelle Obama, postou uma foto sua na mesma rede social.

Olhando para a câmera sobriamente, ela segurava uma folha de papel com a hashtag. Em seu tweet, disse: “Nossas orações estão com as meninas nigerianas desaparecidas e suas famílias. Chegou a hora de #BringBackOurGirls”.

Crédito, BERTRAND LANGLOIS

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Salma Hayek mostrou a mensagem pela libertação das meninas no festival de Cannes e foi seguida por outros

Não demorou para que o mundo da cultura ocidental abraçasse a causa e, especialmente, a mensagem.

A atriz Ashley Judd, a cantora La Toya Jackson e a empresária e celebridade Kim Kardashian West postaram mensagens com a hashtag.

A atriz Anne Hathaway convocou uma manifestação via Facebook, e no dia 9 discursou com um megafone em Los Angeles pedindo a libertação das estudantes nigerianas.

No festival de cinema de Cannes, no sul da França, realizado anualmente em maio, o assunto ocupou o tapete vermelho. Em 17 de maio, a atriz mexicana-americana Salma Hayek ergueu o braço direito e exibiu um papel com a hashtag #BRING BACK OUR GIRLS.

No dia seguinte, outras celebridades do cinema, como Harrison Ford, Sylvester Stallone, Mel Gibson e Antonio Banderas, seguiram o exemplo e posaram segurando uma folha com a mesma mensagem. O cantor Ricky Martin exibiu a mensagem no Billboard Music Awards, na cidade de Las Vegas.

A projeção global da campanha não parecia abalar o Boko Haram, mas elevou a pressão sobre o governo nigeriano.

Três meses depois do sequestro, o presidente Goodluck Jonathan ainda não havia se encontrado com familiares das vítimas, situação que mudaria após a intervenção de Malala Yousafzai.

A ativista paquistanesa viajou até a Nigéria, onde esteve com moças que haviam conseguido escapar do grupo islamista. “Eu considero essas meninas minhas irmãs, elas são minhas irmãs”, disse Malala durante encontro com pais das que ainda eram mantidas reféns.

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A ativista paquistanesa Malala Yousafzai encontrou-se com o presidente nigeriano para pressionar pelo retorno das jovens

Logo depois, a ativista, na época de apenas 17 anos, foi recebida pelo presidente Jonathan. Ouviu dele a promessa de que se encontraria com familiares das estudantes de Chibok, o que ele finalmente fez pouco mais de uma semana depois.

Jonathan recebeu uma comitiva de 177 pessoas, compostas de parentes e cerca de 50 garotas que haviam escapado.

Segundo as famílias, nos três meses desde o sequestro sete pais ou mães foram mortos em ataques do Boko Haram na região.

Em setembro de 2014, com eleições presidenciais se aproximando, Jonathan e seu grupo político foram duramente criticados por usar o lema da campanha pelas meninas de Chibok num esforço eleitoral, com a hashtag #BringBackGoodluck2015.

O presidente acabou ordenando o abandono do lema e a retirada de cartazes com a frase, mas seu destino político parecia selado.

Em março de 2015, Goodluck Jonathan foi derrotado em sua tentativa de reeleição pelo general da reserva Muhammadu Buhari.

A campanha na internet foi aos poucos perdendo destaque, e a hashtag deixou de ocupar posts de celebridades em redes sociais. Houve discussões sobre o real impacto que a publicação de tweets e a exposição de cartazes por celebridades poderia ter no futuro das meninas sequestradas.

A campanha foi comparada a outros esforços anteriores na internet, como a hashtag #Kony2012. Lançada em 2012 em torno de um documentário, ela buscava denunciar Joseph Kony, líder do grupo Exército de Resistência do Senhor (LRA), por manter crianças como soldados em sua guerrilha na África Central.

Com pouco impacto prático, a hashtag desapareceu em pouco tempo.

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Em abril de 2015, um ano após o sequestro, uma manifestação em Paris voltou a exigir o retorno das meninas

Reportagem da revista americana Time, de maio de 2014 e assinada por Megan Gibson, dizia haver motivo para acreditar que a campanha estava surtindo algum efeito.

“Embora seja verdade que nem toda pessoa que tuitou #BringBackOurGirls vai pensar muito nas estudantes nigerianas, a atenção gerada pela hashtag significa que pessoas importantes ao redor do mundo estão agora fazendo exatamente isso.”

A escritora e jornalista nigeriana Adaobi Tricia Nwaubani, no entanto, publicou um artigo em março de 2017 sob o título: #BringBackOurGirls foi um erro.

Ao lembrar que as meninas de Chibok não foram as únicas sequestradas pelo Boko Haram, Nwaubani disse que popularidade desse caso específico tornou mais difícil a libertação das vítimas e dificultou a busca de soluções mais amplas.

“O status de celebridade parece ter contribuído para a continuidade de seu cativeiro”, escreveu a escritora, para quem a fama aumentou o valor das estudantes para o Boko Haram.

“Garotas de Chibok libertadas descrevem uma vida itinerante, em constante movimento com os militantes. Algumas garotas desconhecidas resgatadas que eu entrevistei descreveram, em contraste, ser abandonadas enquanto os militantes fugiam do Exército nigeriano, que se aproximava.”

Negociações e liberdade

Em março de 2015, um novo acontecimento agravou o estado de guerra contra o Boko Haram e aumentou a preocupação com o futuro das jovens sequestradas.

Numa época em que o auto-denominado Estado Islâmico (EI), também conhecido como Isis, desfrutava de presença territorial na Síria e no Iraque, o grupo nigeriano jurou lealdade à organização islamista do Oriente Médio.

O anúncio fortalecia a imagem do EI de principal organização jihadista internacional e indicava uma disposição do Boko Haram de ganhar mais relevância, com possível apoio vindo do exterior.

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As mães das estudantes participavam de protestos na Nigéria e pediam ao governo que trouxesse de volta suas filhas

Isso não impediu, porém, que progressos fossem obtidos durante o governo do presidente Muhammadu Buhari.

Em maio de 2016, uma das estudantes, Amina Ali Darsha Nkeki, conseguiu fugir. Uma semana depois, acompanhada de um homem que ela dizia ser seu marido, ela foi recebida pelo presidente, a quem apresentou seu bebê.

Segundo fontes do governo, o marido seria um antigo integrante do Boko Haram.

O retorno de Amina levou muitos a criarem e usarem novas hashtags no Twitter em referência ao caso: #218ShallBeBack (218 hão de voltar, em referência às que continuavam em cativeiro) e #HopeEndures (a esperança resiste).

Meses depois, em outubro, uma notícia mais auspiciosa: 21 das meninas de Chibok foram libertadas pelo grupo, após negociações com o governo, medidas pela Cruz Vermelha e o governo da Suíça.

O grupo de 21 se reencontrou com suas famílias dias depois, num evento organizado pelas autoridades e marcado por grande alegria e forte emoção.

“Nós somos gratas neste momento. Nunca imaginamos que veríamos este dia”, disse Helen Musa, uma das libertadas.

A liberdade, porém, não era total. O governo nigeriano argumentou ser necessário mantê-las sob sua custódia, para sua segurança e proteção psicológica.

No Natal de 2016, elas foram levadas para sua cidade natal, Chibok, mas seus movimentos eram controlados pelas autoridades.

Notícias ainda melhores vieram em 2017. No início de maio, três anos depois do sequestro e da viralização da hashtag #BringBackOurGirls, outras 82 meninas de Chibok foram libertadas pelo Boko Haram.

A soltura, recebida com celebrações em várias partes do país, foi resultado da mesma série de negociações entre o grupo islamista e o governo nigeriano – que envolveram a libertação de presos acusados de pertencer ao grupo.

Segundo um porta-voz do governo, o grupo inicialmente tinha 83, mas uma delas recusou-se a ser solta porque havia se casado com um dos militantes.

Como ocorreu após a soltura das 21, o governo decidiu que as estudantes precisavam ser protegidas e mantidas sob cuidados das autoridades, para sua segurança.

A grande maioria das famílias, então, só encontraram com elas duas semanas depois, na capital da Nigéria, Abuja.

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Em 2016 e 2017, dezenas de moças foram finalmente libertadas e reunidas com suas famílias

Após uma longa viagem, por cerca de 500 quilômetros de estradas esburacadas, pais, mães, irmãos e irmãs finalmente puderam estar com suas meninas.

No momento do encontro, todos os presentes mostravam não conseguir conter sua felicidade e emoção, com abraços, choros e sorrisos por todos os lados. “Isto é Natal e Ano Novo enrolados num só”, disse à rede americana NPR Godiya Joshua, mãe de Esther, uma das libertadas. “Eu estou muito feliz hoje. Muito feliz e agradeço a Deus.”

Os familiares estavam sendo apoiados e orientados por psicólogos, segundo os quais eles teriam de dar espaço e ter paciência para que as estudantes se readaptassem à vida longe do cativeiro do Boko Haram.

As meninas libertadas continuaram sob a guarda das autoridades nigerianas, segundo o governo, recebendo proteção e apoio psicológico.

Ainda em 2017, as mais de cem ex-reféns foram matriculadas na AUN (American University of Nigeria, ou Universidade Americana da Nigéria), na cidade de Yola, a 270 quilômetros de Chibok.

Começavam uma nova vida, com a oportunidade de concluir seus estudos, interrompidos pela violência do Boko Haram.

Uma delas, Margret, disse ao documentário co-produzido por HBO e BBC: “Desde o começo, eu adorava estudar”. Na AUN, ela se preparava para iniciar uma carreira profissional. “Eu decidi ser médica. E, pela graça de Deus, eu serei.”

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Após sua libertação e um período sob cuidados das autoridades, as jovens foram para a universidade

O Boko Haram continuou realizando ataques em sua guerra contra a educação ocidental e pela implantação da lei islâmica em toda a Nigéria.

Outros sequestros foram registrados, entre eles a tomada de 110 garotas, entre 11 e 19 anos, na cidade de Dapchi em fevereiro de 2018.

Diferentemente do caso das meninas de Chibok, o caso não durou muito para a grande maioria. No mês seguinte, 101 delas foram libertadas, o que sugeria que o governo teria agido de forma rápida e oferecido algo em troca ao grupo.

O conflito no nordeste da Nigéria continuava no final de 2020. No fim de novembro, 110 trabalhadores rurais foram cruelmente assassinados na vila de Koshebe, próximo a Maiduguri. Inicialmente nenhum grupo assumiu responsabilidade pelo massacre, mas as suspeitas caíam sobre o Boko Haram ou outro novo grupo islamista atuante na região, o Estado Islâmico da África Ocidental.

Em dezembro de 2020, o Boko Haram assumiu a autoria de outro sequestro, em que mais de 300 meninos foram tomados de uma escola no Estado de Katsina, no norte do país.

O governo, porém, disse que bandidos comuns haviam realizado o sequestro. Os meninos foram resgatados dias depois pelas autoridades, que negaram ter havido pagamento de resgate.

Até o fim de 2020, das 276 meninas tomadas da escola de Chibok em 2014, ao menos 160 haviam sido trazidas de volta.

Mais de cem continuavam nas mãos do Boko Haram. Em agosto de 2021, informações oficiais do governo da Nigéria davam conta de que 112 meninas do grupo de Chibok ainda continuavam mantidas em cativeiro pelo Boko Haram.

Para seus familiares e todos os que continuavam lutando por sua libertação, nenhuma delas jamais foi esquecida.

Este artigo é parte da série 21 Histórias que Marcaram o Século 21, da BBC News Brasil.

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Fonte: BBC

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