- Mariana Sanches e Luis Barrucho
- Da BBC News Brasil em Washington e Londres
A paulista Caroline Rodrigues, de 33 anos, estava animada para ver neve pela primeira vez em Houston, no Texas, onde mora há dois anos com o marido. O inverno nessa região dos Estados Unidos costuma ser ameno, por isso a expectativa pela noite do último domingo (14/2), a mais fria em 32 anos. O casal não imaginava que o sentimento passaria de excitação a desespero em pouco tempo.
Diante de uma onda de frio recorde que derrubou as temperaturas abaixo de zero no Estado, o sistema de energia elétrica texano não deu conta da demanda por aquecimento, o que levou a cortes no fornecimento para milhões de pessoas ao longo de dias. Ao mesmo tempo, o encanamento de água em diversas partes da região metropolitana de Houston congelou e estourou, e o abastecimento foi interrompido.
E como resultado da falha elétrica, o sinal de celular ficou instável em diversas, impondo silêncio a milhões de pessoas que tentavam obter ajuda.
Sem água, luz, celular e aquecimento, Rodrigues tentou abrigo em hotéis da região: todos estavam lotados ou com as mesmas limitações que sua casa.
Sem outra opção, vedou o quarto do casal, colocou todos os cobertores e edredons sobre a cama, acendeu velas e chegou a cogitar montar uma barraca de camping, já que a temperatura dentro da casa havia caído para algo em torno de 5°C.
“É desesperador perceber que você já vestiu todas as roupas que tinha, fechou todas as janelas, e continua tremendo e com as mãos e os pés dormentes de tanto frio. Tudo isso dentro de casa”, relata Rodrigues, que chegou a enfrentar mais de 56 horas sem energia elétrica a temperaturas congelantes.
Intoxicados e sem água
No prédio onde vive, no centro de Houston, Rodrigues sabia que a situação dela era uma das mais confortáveis.
Seus vizinhos, um casal árabe com uma filha de 9 meses de idade, passaram a se revezar nos cuidados com a criança dentro de um carro, onde podiam manter o aquecimento ligado. E essa não era a única dificuldade: o casal tinha pouca água potável – artigo que se
tornou escasso em supermercados – e nenhuma eletricidade para preparar a fórmula láctea, que a bebê costumava tomar quente.
“O desespero deles era tanto que arrumaram lenha para tentar acender a lareira da sala, mas o sistema de alarme do prédio disparava porque a liberação de monóxido de carbono era alta demais”, conta Rodrigues.
De acordo com o jornal local Houston Chronicle, os bombeiros e os serviços de saúde atenderam a mais de 300 casos de intoxicação por monóxido de carbono nos últimos dias na região de Houston, a maior parte deles causadas por tentativas caseiras de manter o ambiente aquecido, como acender a churrasqueira a gás dentro de casa. “Com esse número de pacientes, isso já está se transformando em um pequeno evento de vítimas em massa”, disse Samuel Prater, médico da emergência do Hospital da Universidade do Texas.
“Este é um desastre absoluto de saúde pública”, disse um oficial de saúde de Houston à rede de TV local KPRC-TV.”(O envenenamento por monóxido de carbono) certamente ocorre em climas frios, mas nunca nessas quantidades”.
A brasileira Patricia Catelan, que vive num subúrbio de Houston com o marido e dois filhos, contou à BBC News Brasil que a família ficou 15 horas sem eletricidade dentro casa sob um frio abaixo de zero.
“Foi um caos total. Fiquei muito preocupada, especialmente porque meu filho ainda tem dois meses de idade”, diz Patricia.
“Aqui as casas são muito antigas, têm cerca de 40 anos e, por isso, elas não estão preparadas para baixas temperaturas, que são muito incomuns. Pessoas que moram aqui há mais de duas décadas disseram que nunca viram algo parecido”, acrescenta.
“Sem eletricidade, ficamos ‘ilhados’ em casa. Tivemos sorte que nosso fogão é a gás e conseguimos cozinhar, até porque não havia entrega a domicílio – os entregadores não estavam trabalhando e a internet parou de funcionar momentaneamente”.
A eletricidade na casa de Patricia já voltou, mas a neve ainda impede a circulação das pessoas. As aulas de sua filha na escola foram canceladas.
Caos nos hospitais
O problema de falta de água e luz não poupou nem mesmo os hospitais. O jornalista Mike Hixenbaugh compartilhou um relato dramático em sua conta de Twitter. Na noite de segunda (15/2), já sem luz e sem água em casa, seu filho de 2 anos se engasgou enquanto comia amendoim. Sem sinal de celular para pedir ajuda ou chamar um resgate, Hixenbaugh se arriscou a dirigir em alta velocidade por ruas congeladas até chegar ao hospital, onde, seu filho passou por uma cirurgia. Ali, em meio a uma epidemia de covid-19, que já matou 40 mil pessoas no Texas, não havia água.
“O hospital não tem nada de água. Eles estão transportando (com baldes e caminhão pipa). Enfermeiros e funcionários estão exaustos – muitos deles longe de famílias presas em casas congeladas – mas fazendo um ótimo trabalho cuidando do meu filho”, comentou Hixenbaugh.
Nesta quinta-feira (18/2), o presidente Joe Biden ordenou o envio imediato de geradores ao Texas para apoiar o funcionamento de centenas de centros aquecidos para a população e garantir abastecimento de água e energia elétrica. O Estado está sob emergência. No total, 20 pessoas já morreram pela onda de frio rigorosa que atingiu o sul dos EUA.
A magnitude do blecaute provocou a ira de alguns funcionários e moradores. O governador Greg Abbott disse que a situação era “inaceitável”.
Ele pediu uma investigação na Texas Electrical Reliability Council (Ercot), uma cooperativa de energia responsável pelo fornecimento da maior parte da eletricidade do Estado.
Mais tarde, Abbott disse à mídia local que o comando do órgão deveria renunciar. “Foi um fracasso total”, afirmou ele à rede de TV ABC News. “Eles mostraram que não eram confiáveis”, acrescentou.
Em um tuíte na terça-feira, a Ercot disse que estava “restaurando o fornecimento o mais rápido possível de maneira estável”.
Solidariedade à brasileira
Em meio ao caos, a comunidade brasileira em Houston colocou em prática uma rede de solidariedade que levou a uma ciranda entre casas.
“Temos um grupo de mais de 20 brasileiros que se ajudam. A gente mora espalhado pela região e vai alertando sobre a falta ou o retorno da luz e da água em cada casa”, conta o mineiro Gustavo Griffo, de 34 anos.
Como a energia elétrica acabou na casa de Griffo mais tarde do que na de Rodrigues, ela e o marido chegaram a passar uma noite onde Griffo, a mulher e a filha de dois anos do casal vivem.
Na terça-feira (16/2), quando ficou claro que a energia elétrica não voltaria tão cedo – e depois que Maria, a filha de dois anos, não conseguiu dormir de tanto frio -, Griffo conseguiu um apartamento de outro amigo brasileiro emprestado.
“Ele tinha luz, só não tinha água. Ao menos ficaríamos aquecidos. Como era um apartamento de um quarto, ele foi dormir na casa da namorada e cedeu o espaço pra gente”, conta Griffo.
A família toda está há três dias sem tomar banho, mas comemora ter um estoque de água potável para beber e cozinhar pelos próximos 4 dias. Já Rodrigues deve ver o fim de seu estoque de água ainda nesta quinta-feira.
“A caçada do dia por aqui vai ser por água”, conta ela, em tom de piada com a situação precária que enfrenta. Para dar a descarga nas privadas, Rodrigues sai às ruas para coletar gelo ou neve em um balde, que deixa descongelar.
A rede de brasileiros também tem sido importante para alertar ao grupo quais postos de gasolina e supermercados ainda têm suprimentos. “Estive ontem no mercado e não achamos nem ovos, nem leite, nada. As prateleiras vazias, parecia cenário de filme apocalíptico”, conta a gaúcha Joceli Lima, de 25 anos, estudante de propaganda em Houston.
A orientação das autoridades é para que os texanos limitem suas compras a suprimentos para poucos dias, para evitar que falte oferta para repor a despensa.
“Por sorte, estávamos bem abastecidos de alimentos. As filas para restaurantes e mercados eram de horas. Impossível”, relata Griffo, que teve dificuldade para reabastecer o carro da família, usado como refúgio aquecido.
Circulam nas redes sociais imagens de pessoas coletando comida do lixo e água de um hidrante no meio da rua, no Texas. A onda de frio ainda deve durar ao menos mais três dias e não há informações sobre quando os lares voltarão a ter fornecimento seguro de água e energia. “Já recebemos avisos sobre tornados e tempestades de inverno antes, nada parecido com isso. E dessa vez, deram um aviso como qualquer outro, ninguém nos mandou planejar ou se preparar. Literalmente nos deixaram no escuro”, diz Rodrigues.
Segundo as autoridades, o clima extremo vai continuar durante o fim de semana.
O Serviço Nacional de Meteorologia (NWS) disse que mais de 150 milhões de americanos estão sob alertas de tempestade de inverno.
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Fonte: BBC