Colômbia pós-Farc: 5 questões sobre Comissão da Verdade

Francisco de Roux

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Francisco de Roux, padre jesuíta e presidente da Comissão para o Esclarecimento da Verdade (CEV) da Colômbia

“Como nos atrevemos a deixar isso acontecer e como podemos permitir que continue acontecendo”, perguntou Francisco de Roux, padre jesuíta e presidente da Comissão para o Esclarecimento da Verdade (CEV) da Colômbia, referindo-se ao mais longo conflito armado da América Latina.

Suas palavras nesta terça-feira (28/6) foram ouvidas por centenas de pessoas em um teatro na capital Bogotá e por milhares de outras que acompanharam a transmissão ao vivo da entrega do histórico relatório final da Comissão da Verdade.

O relatório, intitulado “Há futuro se houver verdade”, é resultado de uma investigação que começou em 2018 e para a qual foram realizadas mais de 14 mil entrevistas com 27 mil pessoas na Colômbia e em 23 outros países.

O trabalho da comissão, que começou após o acordo de paz entre o governo colombiano e os guerrilheiros das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em 2016, foi considerado histórico.

1. O que é a CEV e o que ela entregou?

A Comissão da Verdade é uma instituição autônoma, embora vinculada à Jurisdição Especial para a Paz, que foi criada como resultado do acordo de paz assinado com as Farc em 2016.

Seus 11 integrantes foram escolhidos após um longo processo. Entre eles, estão alguns dos mais importantes e experientes acadêmicos, líderes sociais e jornalistas do país.

A Comissão tinha um orçamento equivalente a US$ 100 milhões (ou mais de R$ 520 milhões em valores atuais) para cumprir seu mandato em três anos. Esse prazo foi prorrogado por sete meses pelo Tribunal Constitucional para que a CEV recuperasse, em parte, o tempo de trabalho comprometido pela pandemia de covid-19.

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Trabalho da Comissão começou após acordo de paz entre governo colombiano e guerrilheiros das FARC em 2016

Foram realizadas 14 mil entrevistas com 27 mil pessoas, incluindo todos os ex-presidentes vivos do país. Também foram instaladas 29 “casas da verdade” em toda a Colômbia para coletar e divulgar informações.

Na terça-feira, o resultado desse trabalho foi trazido a público, mas nem tudo foi publicado. Apenas a declaração de De Roux, uma espécie de prólogo, e o capítulo sobre conclusões e recomendações. Durante os próximos dois meses, serão publicados os outros capítulos.

São 24 volumes, cerca de 8 mil páginas de relatório, que não só terão a versão em texto, mas serão divulgadas por meio de peças teatrais, documentários, exposições e diversos formatos digitais.

2. Quais são os resultados?

Uma pesquisa encomendada pela Comissão constatou que 40% dos colombianos não conhecem a história da guerra e 35% a conhecem “mais ou menos”.

Assim, o trabalho se concentrou em reconstruir a verdade entendida como coletiva e não como uma única versão oficial e incontestável.

Em vez de estabelecer responsáveis, o relatório procura estabelecer os fatores de persistência que fizeram dessa guerra uma das mais longas da história e na qual 80% das vítimas foram civis não combatentes.

“Não vamos contar uma história de mocinhos e bandidos ou preto e branco”, disse uma fonte de alto escalão da Comissão à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

Estas são algumas das conclusões:

  • O narcotráfico não foi apenas o financiador do conflito, mas também foi uma indústria arraigada que permeou a economia e o sistema político.
  • O conflito teve não apenas causas armadas, mas também não armadas, inseridas em um quadro econômico, político e até cultural que estimulou o aumento das armas de camponeses e lideranças políticas excluídas.
  • O modelo econômico neoliberal que foi implementado por décadas, especialmente após os anos 1990, fomentou a exclusão e a desigualdade.
  • O modelo de segurança do Estado, parcialmente financiado pelos Estados Unidos e concebido no âmbito da guerra às drogas, colocou as Forças Armadas em “modo de guerra”. Isso evitou abordar o conflito como um processo histórico complexo no qual o Estado também desempenhava um papel de vitimizador.
  • A exclusão não foi apenas econômica: padrões de discriminação racial, étnica, cultural e de gênero desempenharam um papel crucial na persistência do conflito.
  • O Estado deixou desprotegidas regiões e populações vulneráveis, principalmente os jovens que, diante da crise econômica e da lógica de guerra presente em seus territórios, foram obrigados a ingressar em grupos armados como forma de vida possível.

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Estado deixou desprotegidas regiões e populações vulneráveis, apontou Comissão da Verdade

3. O que a comissão recomenda?

Se a Colômbia não resolver os fatores de persistência da guerra, o conflito “não terminará”, disse Roux em seu discurso na terça-feira.

Durante os quase quatro anos de trabalho da comissão, o conflito se intensificou em algumas áreas remotas, na forma de massacres, assassinatos de lideranças sociais e deslocamento forçado de populações.

Há apenas dois meses, a CEV teve que cancelar vários eventos em regiões sensíveis devido a greves armadas promovidas pelos grupos.

Para enfrentar essa realidade, a comissão faz uma série de recomendações ao Estado, como a criação de instituições que sigam suas próprias recomendações, e afirmações éticas aos colombianos para evitar a resolução de divergências com violência.

Também pede à comunidade internacional que apoie as iniciativas de paz na Colômbia e não encoraje a guerra.

O mandato constitucional da Comissão termina em 28 de agosto. Em seguida, será formado um comitê autônomo que seguirá as recomendações por sete anos e será acionada a rede de aliados da Comissão (ONGs, governos, organismos multilaterais) que esperam contribuir com o processo.

4. Por que a entrega do relatório foi simbólica?

Não apenas é a primeira vez que um trabalho coletivo de tal magnitude e rigor é realizado na Colômbia, mas é a primeira vez que aqueles que estiveram em lados opostos durante anos puderam se ouvir e, em muitos casos, reconciliar-se.

Durante a entrega do relatório, por exemplo, foi mostrado um vídeo em que alguns indígenas Embera ouviam Salvatore Mancuso, ex-chefe paramilitar e traficante de drogas, reconhecer sua responsabilidade e pedir desculpas pelo assassinato do líder de seu povo, Kimmy Pernía.

Braulio Vázquez, ex-comandante das Farc, também foi ouvido, falando em nome do “coletivo fariano” e reconhecendo sua responsabilidade pelas denúncias feitas pelas vítimas em Cauca durante uma reunião que ocorreu em 2021.

E o ex-general Oscar Naranjo, que era diretor da polícia, foi visto reconhecendo que a estigmatização é uma forma de violência e que contribuiu para estigmatizar a universidade como instituição.

Em geral, tem sido um processo em que se reconhece a complexidade do conflito armado e a responsabilidade coletiva.

Foi identificada a responsabilidade não apenas de grupos à margem da lei, mas também das Forças Armadas e outros setores da sociedade responsáveis ​​por tudo o que aconteceu.

Mas essa leitura, precisamente, é politicamente desconfortável para alguns.

Foi muito significativo que, no início do evento, De Roux tenha dito que o presidente colombiano, Ivan Duque, havia sido convidado pela CEV, mas não pode comparecer porque tinha uma viagem internacional. Em seu nome, estava o ministro do Interior, Daniel Palacios.

Assim, a entrega das recomendações foi feita ao presidente eleito, Gustavo Petro, que compareceu com Francia Márquez, a vice-presidente eleita.

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Gustavo Petro, presidente eleito da Colômbia

Em breve discurso, Petro recebeu o texto, agradeceu à CEV e fez um apelo para continuar no caminho do diálogo.

“Vou ler as recomendações que forem feitas a mim, ao povo, à sociedade e ao Estado. Acredito que esse esforço que é dado ao país hoje não pode ser um espaço de vingança, tem que ser olhado e eu acho que esse era o objetivo da CEV, como instituição de paz, justamente como possibilidade de reconciliação e convivência”, disse.

5. O que mais será publicado?

Além da declaração e do capítulo de conclusões e recomendações, nos próximos meses serão publicados capítulos sobre a narrativa histórica da guerra, as violações dos direitos humanos pelo Estado e os fenômenos de resistência ao conflito que intensificaram a violência, como o paramilitarismo.

Há um capítulo dedicado aos depoimentos das vítimas, outro às populações étnicas e aos jovens que foram afetados por ela, um ao exílio de milhões de colombianos (estima-se que 1 milhão dos 4 milhões fugiram para o exterior por causa da violência) e outro sobre a complexidade territorial do conflito.

Todo o material estará disponível em formato digital transmídia na página do CEV, onde qualquer pessoa poderá consultar não só o relatório, mas também o arquivo e os diversos conteúdos em formato de áudio, vídeo e texto.

Durante esses dois meses, De Roux também deve fazer viagens internacionais para divulgar o relatório em locais como a ONU, a União Europeia e o Congresso dos EUA.

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Fonte: BBC