‘Eu era um policial corrupto que vendia drogas’

  • Jessica Lussenhop
  • BBC News, Baltimore

Wayne Jenkins e Momodu Gondo em desenho
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Policiais criminosos – Wayne Jenkins e Momodu Gondo

Nos últimos quatro anos, a jornalista Jessica Lussenhop tem relatado a ascensão e a queda de um esquadrão de policiais corruptos de Baltimore, nos Estados Unidos. Quando ela estava concluindo sua série de podcasts sobre a história, ela recebeu uma ligação inesperada da prisão, conforme o relato a seguir.

“Estou no meu ‘estúdio de rádio’ pandêmico – também conhecido como o armário do meu apartamento – cercado por cabides segurando camisas de botão e vestidos. Estou olhando para o meu celular no escuro. Ele está apoiado em uma mala em cima de um tubo de plástico, e estou segurando meu gravador e microfone.

Quando o telefone toca, coloco a ligação no viva-voz e ouço uma voz feminina robótica pré-gravada: ‘Você tem uma ligação pré-paga. Esta ligação não será cobrada. Esta ligação é de …”‘

Uma voz humana interrompe: ‘Wayne Jenkins.’

‘… um preso em uma prisão federal'”, finaliza o robô.

O ex-sargento do Departamento de Polícia de Baltimore, Wayne Jenkins, atualmente preso sob o número 62928-037 em uma prisão federal em Kentucky, está na linha. Até este ponto, eu só tinha ouvido Jenkins em gravações secretamente gravadas do FBI (polícia federal americana), ligações telefônicas grampeadas, imagens de câmeras corporais e na audiência em junho de 2018, quando um juiz federal o sentenciou a 25 anos de prisão. Foi surreal ouvir a voz dele falando comigo”.

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Jenkins, no centro, antes de assumir o comando da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas

“Há quase quatro anos, tenho feito reportagens sobre Jenkins e o esquadrão de elite da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas que ele liderou. Ele e seis membros dessa unidade agora estão sentados na prisão federal por crimes incluindo conspiração, extorsão e roubo, todos cometidos sob o pretexto de um trabalho policial legítimo.

Eles roubaram drogas e dinheiro. Também venderam drogas e armas apreendidas nas ruas, plantaram evidências nas pessoas e até mesmo cometeram invasões domiciliares”.

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Em 2018, Jessica escreveu um artigo que detalhou o julgamento explosivo em um tribunal federal de Baltimore que revelou os crimes da unidade.

Ela então transformou essa história em uma nova série de podcasts chamada Bad Cops, dividida em sete partes, que você pode ouvir na íntegra, em inglês, neste link.

Ao longo dos anos, escrevi várias vezes a todos esses ex-policiais na prisão, pedindo-lhes que me ajudassem a compreender seus crimes de tirar o fôlego. Minha esperança – talvez ingênua – era a de que ouvir um desses homens falar abertamente sobre como ele passou para o lado negro ajudasse o público a entender melhor a corrupção casual do dia a dia, que pode acontecer entre os profissionais dessa categoria. Eu esperava que isso pudesse estimular uma discussão mais honesta sobre o que é necessário para iniciar uma reforma, ou mesmo redefinir o que significa ser um policial nos Estados Unidos.

De todos os sete homens, a última pessoa que pensei que concordaria em dar uma entrevista seria Jenkins, o “menino de ouro” do Departamento de Polícia de Baltimore. Como líder da unidade, ele recebeu a mais longa sentença de prisão e as autoridades federais que processaram o esquadrão o consideraram o membro mais culpado. Ele nunca tinha dado uma entrevista pública desde que foi preso.

E, no entanto, aqui estamos nós, eu no meu “estúdio” do armário e ele na frente de uma fila de 20 a 30 outros presos, todos esperando sua vez de falar ao telefone da prisão. Não tenho ideia do que ele quer dizer, ou por que, depois de quatro anos, ele está quebrando o silêncio.

“Tudo o que eu digo a você, vou passar no polígrafo”, diz Jenkins perto do início do primeiro telefonema. “Estarei por 25 anos na prisão, não há razão para mentir”.

No dia 1º de março de 2017, o sargento Wayne Jenkins e seis de seus oficiais subordinados da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas entraram no prédio de Assuntos Internos do Departamento de Polícia de Baltimore, acreditando que estavam lá para esclarecer uma pequena reclamação sobre um veículo danificado.

Antes disso, eles foram elogiados como alguns dos melhores policiais armados da cidade – apreendendo dezenas de armas ilegais todos os meses e demonstrando uma “ética de trabalho irrepreensível”, nas palavras de um supervisor. Jenkins era uma estrela em ascensão no departamento por causa da capacidade dele de fazer regularmente grandes apreensões de drogas e armas.

Mas quando os policiais saíram dos elevadores no segundo andar do prédio, foram recebidos por uma equipe da SWAT do FBI. Os sete policiais foram imediatamente algemados.

Descobriu-se que agentes federais mantiveram a unidade sob vigilância por meses. Usando grampos telefônicos e dispositivos de gravação ocultos, eles acumularam uma riqueza de evidências que mostravam que os policiais estavam roubando cidadãos, preenchendo centenas de horas extras que nunca trabalharam, roubando drogas e até mesmo vendendo armas ilegais nas ruas.

Cinco dos ex-oficiais, incluindo Jenkins, se declararam culpados. Mas dois se disseram inocentes e foram a julgamento, que cobri para a BBC. Foi lá que toda a extensão da má conduta dos policiais se tornou pública.

Crédito, FBI

Crédito, FBI

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Da esquerda para a direita: Evodio Hendrix, Daniel Hersl, Jemell Rayam, Maurice Ward, Marcus Taylor, Momodu Gondo

Em janeiro de 2018, uma longa lista de vítimas se manifestou – muitas tinham ligações com o tráfico de drogas – e contaram histórias angustiantes de como foram roubadas pelos policiais durante abordagens aos carros delas e buscas em suas casas. Algumas tentaram reclamar, mas foram ignoradas. Shawn Whiting, um homem cuja casa foi roubada em US$ 16 mil (R$ 87 mil) e um quilo e meio de heroína, testemunhou que sabia que, como traficante de drogas, sua palavra contava muito menos do que a dos policiais.

“Eu não fiz uma denúncia pelo simples fato de que eu sabia que (o tribunal) iria acreditar neles e não em mim”, disse ele ao júri.

Vários dos ex-oficiais também tomaram posição – agora vestindo macacões da prisão em vez de uniformes – e detalharam as táticas incentivadas por seu líder, Jenkins. Eles testemunharam que Jenkins disse para carregarem armas de ar comprimido para plantar em alguém, caso ferissem ou matassem uma pessoa desarmada. Contaram também que ele frequentemente retirava grandes quantidades de drogas de suspeitos sem apresentá-las à sala de apreensões da polícia. Dois policiais disseram que ele falou abertamente sobre fazer invasões domiciliares a traficantes de drogas de alto escalão que ele chamou de “monstros”, por causa da quantidade de drogas e dinheiro que ele esperava que tivessem escondido em suas casas.

Uma das testemunhas mais surpreendentes foi um homem chamado Donald Stepp, um fiador, que revelou que estava repassando drogas que Jenkins vendeu para ele. Ele disse que, juntos, eles arrecadaram cerca de US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões) em narcóticos.

“Era uma fachada para uma empresa criminosa”, disse Stepp sobre a Força-Tarefa de Rastreamento de Armas. “Era óbvio para mim, quando estava pegando milhões de dólares em drogas do Departamento de Polícia de Baltimore e vendendo-as, que… este não é um departamento de polícia normal.”

Stepp testemunhou que o acordo era tão lucrativo que ele persistiu por anos antes de ser preso em dezembro de 2017.

“Estou aqui por causa da ganância”, disse ele. “É simples assim.”

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Imagem estilizada do julgamento

Jenkins não testemunhou no julgamento, mas de certa forma foi a estrela de todo o processo.

Após três semanas de depoimentos surpreendentes, o júri considerou os dois policiais restantes culpados. Os sete agora estão em prisões federais espalhadas por todo o país. A sentença mais longa foi aplicada a Jenkins: 25 anos. Ele deve deixar a cadeia apenas em 2038.

Depois que ele foi enviado para a prisão federal, escrevi cartas a Jenkins, uma vez por ano – junto com muitos outros jornalistas, autores de livros, produtores e documentaristas – solicitando uma entrevista. Nunca tive resposta, e ele também não parecia estar respondendo a mais ninguém.

Presumi que ele nunca aceitaria.

No verão passado, quando eu estava terminando o trabalho em “Bad Cops”, um e-mail estranho apareceu na minha caixa de entrada. A mensagem dizia: “Saudações. Sou Agente e Representante do Sr. Jenkins. Entre em contato comigo.”

Um estranho ir e vir com um homem que costumava ser companheiro de cela de Jenkins terminou comigo no meu armário, esperando por aquela ligação.

Na escuridão, vejo o número da central de prisões iluminar a tela do meu celular.

“Oi, senhora”, diz Jenkins quando atendo. “Aqui é o Wayne.”

Na prisão federal, os presidiários só podem falar ao telefone durante 15 minutos antes que a linha seja cortada automaticamente. Tenho tantas perguntas a fazer e não tenho certeza se esta será minha única oportunidade de falar com ele.

“Especialmente porque estamos com pouco tempo, há alguma coisa que você queira dizer logo de cara?” Eu pergunto.

“De cara, não vivíamos luxuosamente. Eu vivia de maneira modesta, não enriquecemos”, ele responde. “Eu nunca tive (reclamações de roubo) porque nunca tirei dinheiro de indivíduos. Eu dei drogas para Donny (apelido de Donald) nos últimos dois anos quando fui policial, mas não peguei o dinheiro das pessoas. Eu meio que tinha um código mental, talvez um código moral confuso. “

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Imagem estilizada de Baltimore

Imediatamente, eu descobri que Jenkins fala incrivelmente rápido. Tenho que tentar desvendar suas respostas enquanto ele passa de um assunto para outro, às vezes tão rápido que não consigo acompanhar. Os primeiros 15 minutos acabam em um piscar de olhos. A linha fica muda e eu sinto que mal cheguei a lugar nenhum. Mas então, cerca de uma hora depois, o telefone toca novamente. Jenkins me disse que trocou algumas salsichas com outros presos por um lugar à frente na fila.

Ao longo de quatro ligações telefônicas (cortesia de alguns sacos trocados de batatas fritas), Jenkins pinta um quadro do Departamento de Polícia de Baltimore como um lugar onde a doutrinação para a corrupção começa quase imediatamente. Ele me disse que a primeira vez que roubou dinheiro, era apenas um novato. Aconteceu enquanto Jenkins e outros policiais estavam revistando um apartamento.

No quarto, Jenkins diz que ele e um supervisor veterano encontraram uma mala cheia de dezenas de milhares de dólares em espécie. Jenkins diz que o veterano o incitou a aceitar dinheiro.

“Ele fez um tipo, ‘Não estou dizendo para você fazer nada, só estou dizendo que seria bom se tivéssemos US$ 10 mil (R$ 54 mil), cada um, para ir a Atlantic City'”, lembra Jenkins. “E eu me lembro de pegar os US$ 10.000.”

Muito do que ele me disse foi muito mais sistemático. Ele afirma que, logo no início, foi instruído a mentir em relatórios policiais e pedidos de mandado para fazer as prisões soarem como justa causa provável, ou seja, uma razão legal para deter alguém. Na verdade, conta, eles estavam fazendo prisões de todas as maneiras possíveis.

“Este é um ditado que falamos: ‘Não deixe que uma causa provável atrapalhe uma boa prisão'”, diz Jenkins. “Se você tem que mentir sobre o que viu, ouviu ou testemunhou, contanto que o preso seja sujo, se ele foi pego com drogas e armas, e se cometeu o crime – apenas prenda-o.”

Ele me disse que, frequentemente, quando ele ou seus colegas policiais não tinham vontade de entregar as drogas que apreenderam ou de cumprir a papelada da prisão, eles simplesmente confiscavam os estoques de drogas das pessoas e os liberaram. Mais tarde, afirma, jogavam as drogas pela janela ou pelo esgoto

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Imagem estilizada de Baltimore

“Comprimidos de heroína, sacos de maconha”, diz ele. “Já vi isso ser feito, honestamente, por Deus, 500 vezes.”

Jenkins cita dois locais onde diz que as drogas são atiradas: numa ponte ferroviária perto da delegacia do Distrito Leste e numa rampa que dá acesso a uma rodovia arborizada, no caminho para a delegacia do Distrito Norte. Semanas depois, eu mesma visito esses locais para ver se consigo encontrar alguma coisa.

Na rampa de saída, encontro quatro sacolas vazias espalhadas ao longo de um trecho da calçada sem tráfego de pedestres. Mas apenas isso.

Jenkins também me disse que sempre que a conduta imprópria de um policial era identificada pela Corregedoria ou por uma agência externa de aplicação da lei, era rotina os policiais envolvidos se encontrarem para combinar suas histórias, para evitar punição.

“Imediatamente, nos reunimos e você repassa sua história. ‘Você diz isso, você diz aquilo, certo?’ Você é ensinado queno segundo que alguém tem problemas, nós nos encontramos e conversamos cara a cara “, diz ele.

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Pilha de dinheiro apreendido

Enquanto Jenkins está me dizendo isso, ele está citando nomes. Ele nomeia o veterano que diz que o treinou para roubar pela primeira vez. Ele também cita dois ex-supervisores, a quem ele diz ter reclamado sobre seus ex-oficiais subordinados, Momodu Gondo e Jemell Rayam, dizendo que eles tinham uma má reputação por roubar dinheiro. Ele diz que foi informado de que, como esses policiais eram tão bem-sucedidos em apreender armas, não havia nada a ser feito.

A BBC não cita esses três ex-supervisores, já que nenhum deles foi acusado de um crime relacionado a este caso. Mas telefonei para eles e para o Departamento de Polícia de Baltimore para ver se alguém responderia a essa lista de acusações.

Um ex-supervisor nunca respondeu. O segundo não quis comentar. A esposa do terceiro deixou uma mensagem dizendo que eu poderia pegar o que Jenkins me disse e “enfiar…”.

Nunca tive respostas do Departamento de Polícia de Baltimore.

A conversa com Jenkins fica mais complicada quando nos voltamos especificamente para os crimes da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas.

Jenkins assinou um acordo de confissão em 2017 que detalhava sete roubos dos quais ele participou junto com outros membros da unidade, bem como sua parceria de tráfico de drogas com Donald Stepp, o ex-fiador e traficante de cocaína que testemunhou no julgamento. Jenkins admitiu ter roubado drogas do trabalho e as entregou a Stepp, que as vendeu. A dupla também roubou objetos de valor, como relógios de pulso de última geração, durante invasões.

Mas Jenkins queria discutir os detalhes de seu acordo de confissão, dizendo que muitos deles não eram verdadeiros. Um acordo de confissão é um documento que lista atos criminosos específicos dos quais o réu está concordando em se declarar culpado. Jenkins teve que afirmar sob juramento, perante um juiz federal, que o que o documento dizia era verdade. Era difícil para mim, entender e analisar todas as negações de Jenkins, agora.

Por exemplo, perguntei a ele sobre o roubo de um homem que vivia em uma grande mansão nos subúrbios de Baltimore – um roubo do qual ele se declarou culpado em seu acordo de confissão.

“Havia câmeras em todos os lugares, então eu jamais teria levado um dólar”, ele me diz. “Mais tarde, naquela noite, Gondo me deu dinheiro. Horas mais tarde. Estou falando que depois de horas ele me deu dinheiro.”

“E você aceitou dinheiro, afinal?”, eu pergunto, um pouco confusa.

“Sim, sim. Sim, eu aceitei”, diz ele. Ele também reconheceu ter roubado o relógio de US$ 4.000 (R$ 21,7 mil) do homem, que ele deu para Stepp vender.

Na casa de outro homem, a força-tarefa arrombou um cofre e roubou centenas de milhares de dólares. Em nossa conversa, Jenkins disse que isso não é verdade – membros da equipe roubaram dinheiro naquele dia, mas de algum outro lugar da casa.

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Equipamento que dois dos oficiais do grupo testemunharam que seria usado para invasões domiciliares

Quando aponto que ele já se declarou culpado por todos esses incidentes, Jenkins me diz que só assinou o acordo porque temia que, se fosse a julgamento, poderia ter acabado atrás das grades pelo resto da vida. Ele diz que não podia arriscar tanto sendo um pai com uma família jovem.

“Prisão perpétua com três filhos pequenos. Agora eu pego de 10 a 15 anos… Vendi drogas como policial corrupto”, diz. “Peguei 25 anos. Recebi acusações de gangster, de extorsão. Coisas que eles costumavam dar à máfia que ocultava corpos em cimento.”

Também indico a ele que é uma prática bastante comum os promotores apresentarem acusações tão graves que o réu sente que não tem escolha, a não ser se confessar culpado. Na verdade, é altamente provável – senão certo – que muitas das pessoas que Jenkins colocou na prisão tiveram essas táticas usadas pelos promotores.

“Obviamente estou aqui agora, então vejo os dois lados. Se eu pudesse voltar tudo na minha vida, eu teria sido um promotor”, diz ele. “Eu preferiria ter sido um promotor. Você nunca sabe até chegar neste lado, incluindo eu, o que você faz com as famílias.”

Um dos incidentes mais chocantes do acordo de confissão é uma ocorrência que Jenkins agora nega. Na primavera de 2015, a cidade de Baltimore foi abalada por protestos após a morte, sob custódia, de Freddie Gray, de 25 anos. Dezenas de farmácias foram saqueadas e milhões de dólares em medicamentos desapareceram. No depoimento de Jenkins, ele diz que, “em abril de 2015, depois dos tumultos após a morte de Freddie Gray, Jenkins trouxe remédios roubados de alguém que saqueou uma farmácia, prescritos para DS, para que ele pudesse vender os medicamentos”.

“DS” significa Donald Stepp.

“Nunca peguei nada. Fui um herói”, diz Jenkins sobre sua atividade durante os protestos. “Eu nunca tirei nada de um saqueador, então me ajude Deus. Donny inventou cada peça disso.”

Donald Stepp foi libertado da prisão federal em janeiro de 2021. Ele cumpriu 20 meses de uma sentença de 5 anos, em conexão com o caso da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas, antes de ser libertado por compaixão.

Stepp ficou em prisão domiciliar por seis meses com uma tornozeleira eletrônica até este verão. Hoje, ele é um homem livre, vivendo sem restrições com sua esposa e filha na parte oriental do condado de Baltimore. Ele está, como ele gosta de dizer, “bastante inchado”.

Mas quando eu digo a ele que entrevistei Wayne Jenkins, seu ex-parceiro de drogas, Stepp fica descontente, para dizer o mínimo. Não há amor perdido entre esses dois ex-amigos.

“Ele nunca foi um amigo verdadeiro”, diz Stepp. “Eu não tenho nenhum respeito por ele.”

A história de Stepp e Jenkins é profunda. Eles conheciam as famílias uns dos outros na infância. Quando adultos, eles se encontraram novamente em um jogo de cartas underground, frequentado por policiais de Baltimore. Foi durante esses jogos que Stepp ouviu Jenkins se gabando dos grandes estoques de drogas que ele frequentemente encontrava durante seu trabalho como policial à paisana.

Na época, Stepp administrava sua própria empresa de fiança, a Double D Bail Bonds. Mas ele diz que também lutava contra o vício do jogo e usava grandes quantidades de cocaína. Por volta de 2011, Jenkins abordou Stepp e sugeriu que eles abrissem negócios juntos.

Jenkins pararia de trazer aquelas grandes apreensões de drogas para a sala de evidências e, em vez disso, as entregaria para Stepp vender.

“Eu me senti confortável com isso porque todos os policiais que conheci, muitos durante os jogos de cartas, na minha opinião, eram os donos da cidade”, disse Stepp mais tarde ao júri no julgamento da força-tarefa. “Eu pensei que eu era um vencedor.”

Stepp diz que Jenkins começou a trazer remessas de drogas quase diariamente, colocando-as em um galpão trancado atrás da casa de Stepp. Os carregamentos incluíam maconha, cocaína e MDMA, todos os quais Stepp fez o seu melhor para vender.

Jenkins começou a chamar Stepp para participar das ocorrências de prisões, o encorajando a tentar entrar nos esconderijos dos traficantes para roubar qualquer dinheiro ou drogas que pudessem encontrar. Eles rastrearam outros traficantes e invadiram suas casas quando não havia ninguém. Essa parceria durou cinco anos.

Em dezembro de 2017, oito meses depois de Jenkins ser preso, os oficiais do FBI e do condado de Baltimore arrombaram a porta de Stepp e o prenderam dentro da cozinha. Não demorou muito para que Stepp começasse a suspeitar que Jenkins o delatou.

Mas Stepp tinha um ás na manga – por meses, ele documentou os crimes em seu telefone celular. Ele tirou fotos de si mesmo e de Jenkins juntos no departamento de polícia, onde Stepp às vezes pegava drogas. Quando Jenkins o chamou para ir a uma casa que a força-tarefa estava investigando, Stepp tirou fotos dos policiais entrando e saindo do local. Mais tarde, Jenkins saiu carregando 2 kg de cocaína, que jogou no carro de Stepp.

Stepp entregou tudo aos promotores americanos. Em parte, devido à sua cooperação no caso, ele recebeu uma sentença muito mais curta do que a dos oficiais da força-tarefa.

“Ele derrubou o primeiro sangue”, diz Stepp sobre Jenkins. “Agora vamos queimá-lo. E foi o que eu fiz.”

Pouco depois de Stepp denunciar seu ex-amigo, Jenkins se declarou culpado.

Em minha conversa com Jenkins, ele passou muito tempo contestando o relato de Stepp sobre sua parceria. Ele afirma que foi ideia de Stepp começar a vender drogas juntos, e não o contrário. Ele diz que Stepp o pressionou. Ele também diz que ganhou cerca de US$ 75 mil (cerca de R$ 400 mil) com as vendas de drogas, ao contrário dos números apresentados por Stepp. Ele chama Stepp de “o maior exagerador que já conheci na minha vida”.

Quando digo isso a Stepp, ele fica com raiva. Ele afirma categoricamente que Jenkins está mentindo para mim. Ele aponta para o acordo de confissão de culpa, no qual Jenkins concordou que a parte dele nas vendas de drogas chegaria a cerca de US$ 250 mil R$ 1,36 milhão). Ele me lembra que o escritório do procurador-geral dos EUA o considerou mais confiável do que Jenkins.

“Ele é um mentiroso patológico”, diz Stepp. “Eu não temo nada que ele saiba ou coisa do tipo. Porque, acredite em mim, eu vou me levantar em um segundo.”

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Donald Stepp dentro da sede dapPolícia de Baltimore, em uma foto tirada por Wayne Jenkins

Stepp está seguindo em frente com a vida dele – em certo sentido. Em março, a HBO anunciou uma nova minissérie de David Simon, o criador da clássica série de crimes de Baltimore, ‘The Wire’. O novo projeto de Simon contará uma versão fictícia da Gun Trace Task Force, e começou a filmar nas ruas de Baltimore durante o verão. Wayne Jenkins será interpretado por Jon Bernthal, o mesmo ator que interpretou “O Justiceiro”.

A HBO pediu a Stepp que ele fosse um consultor do projeto, o que ele concordou com entusiasmo. Seu cachê será doado às vítimas da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas. Enquanto isso, a conta dele no Twitter está cheia de fotos dele no set de filmagem, conversando com Bernthal e alguns dos outros atores.

Ele está abrindo um serviço de consultoria chamado Stepp Right Consultants, para dar orientação e mentoria a homens e mulheres que estão prestes a entrar no sistema penal federal. Ele também está trabalhando em um livro de memórias, que, segundo ele, revelará o conteúdo de vídeos e fotos que tirou de Jenkins e que nunca foram divulgados publicamente. Ele pretende até mesmo lançar uma linha de roupas inspirada em seu extinto negócio de fiança, a Double D Bail Bonds.

Embora ele possa não estar pronto para abandonar seus sentimentos em relação a Jenkins, a estranha jornada de Stepp parece – pelo menos por agora – estar caminhando para um final feliz.

“É uma história surreal. Mas é o grande homem lá em cima”, diz ele. “Estou grato, muito grato.”

Perguntei várias vezes a Wayne Jenkins por que ele quis dar a entrevista para mim. Ele me deu alguns motivos.

O primeiro foi que ele sentiu que tinha sido atropelado pelos promotores americanos em seu acordo de confissão (o Ministério Público de Maryland se recusou a comentar). Outra foi falar sobre como é fútil a vida dentro do sistema penal.

“Eu juro, eu gostaria de ter sabido antes de ter colocado alguém aqui… Eu gostaria de ter conhecido o outro lado”, diz ele a certa altura. “Não é nada que eu já tenha imaginado. Não é de admirar que as pessoas saiam mais intolerantes do que quando entram.”

E, claro, Jenkins também espera algum tipo de redução da sentença.

Mas acho que ele também falou comigo porque não gosta da imagem de si mesmo que tem sido veiculada na imprensa – como um sociopata, como alguém quase desumanamente mau.

Antes de nossa entrevista, o representante de Jenkins queria que eu falasse com alguns de seus antigos amigos do ensino médio. Eles queriam me dizer que Jenkins era um pai dedicado, um bom treinador de futebol. Um amigo leal. Eles me disseram que estavam perturbados por ele estar sendo retratado como um “monstro”.

Não foi a primeira vez que ouvi essa palavra para descrever Jenkins. Embora ninguém deva esquecer por um instante que Jenkins e seus oficiais causaram danos incalculáveis ​​aos cidadãos de Baltimore, não acho útil tentar classificá-lo como um “monstro”. A ideia de que a Força-Tarefa de Rastreamento de Armas se tornou desonesta simplesmente porque seu sargento era excepcionalmente mau ignora todas as formas sistêmicas pelas quais ele foi encorajado a operar da maneira que agiu. Além da cultura policial mais ampla que o apoiou (também deve ser observado que vários dos membros do esquadrão começaram a roubar dinheiro muito antes de entrarem para a força-tarefa).

Identificá-lo como um indivíduo imperfeito em um sistema que, de outra forma, funcionava perfeitamente é uma forma de evitar mudanças no departamento de polícia, de fugir da responsabilidade de realmente impedir que isso aconteça novamente. Vai ser necessário um tipo de esforço quase inimaginável para desenterrar as raízes da corrupção no departamento, e é muito mais fácil apenas prender os policiais que forem pegos e continuar com os negócios normalmente.

Ainda outro amigo de Jenkins disse algo que eu não esperava. Ele reconheceu que poderia dizer que algo estava errado com Jenkins na época da onda de crimes da força-tarefa.

“Não somos estúpidos. Sabíamos que ele não era o policial honesto e de boa conduta que todos os policiais deveriam ser”, disse ele. “Ele sempre teve grandes somas de dinheiro no bolso. Costumava me dizer que ganhava jogando pôquer.”

Eu pergunto a este amigo por que ele não disse nada a ninguém. Ele responde algo que nunca ouvi ninguém admitir em voz alta.

“Dissemos: ‘Sabe, ele está roubando’ os pedaços de merda de Baltimore que são a razão de eu e meus filhos não podermos andar na rua e nos sentir seguros”, diz ele.

Esse tipo de mentalidade pressupõe que as vítimas da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas – muitas delas negras e pobres – mereciam o que aconteceu com elas. É deprimente que este seja um ponto de vista provavelmente compartilhado por muitos em Baltimore, e é uma parte da razão pela qual a força-tarefa se safou pelo que fez por tanto tempo.

A força-tarefa não detinha o monopólio do dano, é claro. Baltimore pode ser um lugar complicado e perigoso. E os homens e mulheres que os policiais perseguiram e cometeram abusos podem ter causado danos e abusos a si próprios. Algumas das conversas mais perturbadoras que tive foram com pessoas que se sentiram vítimas duas vezes – tanto pelos policiais quanto pelos criminosos. A diferença importante, entretanto, é que os traficantes nunca fizeram um juramento para servir e proteger. Eles não estavam sendo pagos pelos contribuintes para manter a cidade segura e não estavam operando com todo o poder e proteção que a polícia possui.

Não pude ajudar a pensar sobre as muitas vítimas do esquadrão que conheci ao longo dos três anos em que estou trabalhando nesta história. Meus pensamentos voltam para Kenneth Bumgardner, um pai trabalhador que foi perseguido pela força-tarefa quando suspeitaram que ele tinha maconha. Ele acordou em uma rua gelada da cidade com a mandíbula quebrada e não conseguiu comer alimentos sólidos por meses.

“Estou finalmente tentando colocar minha vida de volta nos trilhos”, ele me disse. “Ainda é difícil, porque eu tenho muita dor na boca à noite… Estou perdendo muitos dentes, sabe. Eles costumavam ser bem cuidados e bonitos.”

Penso em Shawn Whiting, um ex-traficante de heroína que passou anos na prisão depois que os policiais o roubaram. Ele não conseguiu que ninguém acreditasse nele na época e, até hoje, ele teme a aplicação da lei.

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Shawn Whiting, ao centro, em uma coletiva de imprensa realizada por vítimas da força-tarefa

“Você tem pesadelos com policiais assediando você, batendo em você, apenas algemando você, é apenas um pesadelo que eu tenho e basicamente não foi embora ainda”, disse ele.

“Eu passo por isso diariamente, com medo da polícia, me perguntando quando eles vão me parar, tentando plantar drogas ou algo assim. Te machucar ou até mesmo te matar.”

Vítimas como Bumgardner e Whiting tiveram a coragem de falar. Não há como dizer quantas outras pessoas foram afetadas, mas tiveram muito medo de se manifestar.

Uma vez, alguém me disse que levará uma geração para que o impacto direto da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas comece a desaparecer, e será impossível medir como o trauma das vítimas se manifestará na vida de seus filhos, familiares e amigos. As consequências dos crimes do esquadrão ainda estão se espalhando pela cidade e, sem dúvida, fizeram de Baltimore um lugar menos seguro para todos que moram lá.

Continuei trabalhando nessa história, na esperança de que quanto mais o público soubesse sobre a corrupção no departamento de polícia, maior a chance de haver algum tipo de reforma sistêmica.

Mas Whiting não é tão otimista. Quatro anos depois que os oficiais da Força-Tarefa de Rastreamento de Armas foram presos, ele diz que não vê diferença nas ruas de Baltimore.

“A forma como a polícia age em relação às pessoas não mudou”, disse-me recentemente. “Vejo alguns policiais assediando as pessoas, usando as mesmas pequenas táticas que a Força-Tarefa de Rastreamento de Armas usava.”

Perguntei se ele acha que outro escândalo é inevitável.

“Absolutamente. Vai acontecer de novo”, disse ele. “Não acabou. Isso foi apenas o começo.”

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Fonte: BBC

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