Francisco: o surpreendente papa latino-americano

O papa Francisco

Crédito, Reuters

Legenda da foto,

O argentino Jorge Mario Bergoglio tornou-se papa após a inesperada renúncia de Bento 16

A escolha de um novo papa é um acontecimento histórico, que marca a vida do 1,3 bilhão de católicos e toma de curiosidade o resto da população mundial. Como o papado é uma função para a vida toda, sem mandato definido, um novo papa costuma ser precedido da notícia de que o pontífice anterior está doente. Após a doença, vem sua morte, seu funeral, e então o mundo se prepara para um novo chefe da Igreja Católica. Nada disso aconteceu em 2013.

Contra a tradição e a expectativa de todos, o papa Bento 16 não esperou pela natureza – ou a decisão de Deus. Preferiu ele mesmo escolher o momento de sua partida e renunciou ao cargo. Contra a expectativa de muitos, ele foi sucedido por alguém que se mostrou seu oposto. Papa Francisco, o primeiro com o nome de Francisco entre os 266 pontífices dos quase 2 mil anos do trono de São Pedro, foi também o primeiro originário da América Latina.

A surpreendente renúncia

Tudo parecia relativamente bem na cúpula do Vaticano no início de 2013. Apesar de seus 85 anos de idade, o papa Bento 16 seguia firme em seus compromissos. Em janeiro, recebeu a visita do príncipe Albert de Mônaco e sua mulher, princesa Charlene, posando sorridente para fotos. No mesmo mês de janeiro, Bento 16 mostrava-se cada vez mais à vontade com a tecnologia moderna, enviando seu primeiro tuíte em latim – em 2011 ele disparou seu primeiro tuíte.

Crédito, Franco Origlia/Getty Images

Legenda da foto,

A inesperada notícia da renúncia do papa Bento 16 pegou todos de surpresa e chocou muitos católicos

No mês seguinte, entretanto, veio uma notícia que o mundo católico não recebia desde 1415: o papa decidira renunciar. Em 11 de fevereiro, Bento 16 anunciou que abandonaria o posto de chefe da Igreja no final daquele mês – medida inédita desde que Gregório 12 deixou o trono de São Pedro seis séculos antes. As razões alegadas pelo pontífice alemão foram, basicamente, sua saúde frágil. Não que ele estivesse doente ou tivesse poucos anos de vida – no final de 2020, ele continuava vivo e ativo. Em 2013, sua energia não parecia ser um empecilho para suas missas, sermões ou encontros com convidados ilustres. Talvez não mais fosse, porém, suficiente para o grau de intrigas e disputas internas que parecia existir na cúpula do Vaticano.

Em maio de 2012, as autoridades do pequeno Estado prenderam o mordomo de Bento 16, Paolo Gabriele, acusado de vazar documentos num escândalo que ficou conhecido como Vatileaks. Gabriele, que ficou preso por três meses, buscava denunciar supostos casos de corrupção dento da Cúria, e o episódio foi um exemplo do tipo de problema que cercava o pontífice. O conservador Bento 16 assumira o comando da Igreja em 2005, após a morte de João Paulo Segundo, num período de grande divisão no Vaticano, abalado pelos sucessivos escândalos de abusos sexuais por padres e bispos católicos ao redor do mundo. Oito anos depois, Joseph Ratzinger parecia não se considerar mais a pessoa a gerenciar tais desafios internos. Acreditava ter cumprido sua missão.

A surpreendente escolha

Após a chocante notícia da renúncia papal ter sido digerida pela comunidade católica, a cúpula da Igreja começou a debater o nome de seu substituto, em meio a muita especulação. Em primeiro lugar, o Vaticano se via na inusitada situação de escolher um novo pontífice quando o anterior ainda estava entre eles. Muitos questionavam se Bento 16 – nome mantido por Ratzinger após a renúncia, com o título de “papa emérito” – teria alguma influência no trabalho do novo pontífice. Entrevistado pela BBC logo depois da renúncia, o irmão do papa fez questão de afastar essa possibilidade. “Naquilo que precisarem dele, ele estará disponível, mas ele não vai querer interferir nos assuntos do seu sucessor.”

Crédito, Guido MARZILLA/Getty Images

Legenda da foto,

Bento 16 escolheu como e quando deixar o comando da Igreja e despediu-se dos fieis em Castel Gandolfo

No dia 28 de fevereiro, Bento 16 despediu-se e abandonou o posto. Num encontro com os cardeais, dirigiu-se ao grupo prometendo obedecer ao novo chefe da Igreja. “Entre vocês, no Colégio dos Cardeais, está o futuro papa, a quem eu já prometo hoje a minha incondicional reverência e obediência.” Mais tarde, ele apareceu a um grupo de fiéis, na sacada do Palácio Papal de Castel Gandolfo, cidade a 25 quilômetros ao sul de Roma. Às 20h daquele dia, seu papado chegou ao fim.

No dia 12, o conclave de 115 cardeais reuniu-se em Roma para escolher o novo papa. Nas semanas anteriores foi grande a especulação sobre o nome do substituto de Bento 16. Entre os mencionados em reportagem a BBC News, estavam nomes como os italianos Angelo Scola e Gianfranco Ravasi, o canadense Marc Ouellet, o ganês Peter Turkson e o filipino Luis Tagle. Três latino-americanos apareciam entre os destaques da BBC: os brasileiros Odilio Pedro Scherer, de São Paulo, e João Braz de Aviz, de Santa Catarina, e o argentino Leonardo Sandri. Ausente dessa e de tantas outras listas publicadas na imprensa internacional, estava o nome do jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio – apesar de, segundo relatos, Bergoglio ter chegado em segundo lugar na votação do conclave de 2005, que escolheu Ratzinger.

Crédito, Peter Macdiarmid

Legenda da foto,

O sorridente papa Francisco faz seu primeiro proununciamento a fiéis na Praça São Pedro

A primeira votação, no dia 12, não gerou um vencedor – algum candidato precisaria ter ao menos dois terços dos votos -, e a fumaça preta foi vista pela primeira vez saindo da chaminé da Capela Sistina. No dia seguinte, uma quarta-feira, outras três votações, duas de manhã e uma à tarde, resultaram em novos impasses – e novas emissões de fumaça preta. Já havia, entretanto, um movimento dos cardeais em torno da candidatura de Bergoglio. Em meio às disputas que aparentemente opunham a força dos italianos e uma desconfiança em relação aos aspirantes locais, o argentino de ascendência italiana firmou-se como um nome aceito por praticamente todos.

Na quinta votação, a fumaça expelida era branca. Da sacada diante da Praça São Pedro, o porta-voz fez o esperado anúncio em latim “Habemus Papam” (Temos um papa). Em seguida, revelou o nome de Bergoglio e informou ao mundo como ele seria conhecido a partir de então: Francisco. Como explicou posteriormente o Vaticano, o nome foi escolhido pelo argentino como homenagem a São Francisco de Assis, um santo associado ao compromisso com os mais pobres. Tão emblemática é a figura de São Francisco de Assis que seu nome nunca havia sido adotado por um pontífice antes. A decisão do novo chefe da Igreja era a primeira indicação do início de uma nova era em Roma.

Crédito, JOHANNES EISELE/Getty Images

Legenda da foto,

Uma multidão emocionada e eufórica recebeu e ouviu o novo papa no Vaticano

Pouco depois do anúncio, no início da noite, o argentino apareceu na sacada, pela primeira vez como pontífice, diante de uma lotada e eufórica Praça São Pedro. Sorria timidamente. Vestia branco, sem o manto vermelho usado por outros papas nessa ocasião, e carregava no peito o mesmo crucifixo de ferro que usava como cardeal, em vez do tradicional crucifixo dourado do chefe da Igreja – gestos que buscavam transmitir uma imagem de simplicidade. “Rezem por mim”, pediu o novo papa, de 76 anos, à multidão, em mais um gesto de humildade. Na Argentina, fiéis comemoravam. “Isso é uma bênção para a Argentina”, gritava uma mulher numa rua de Buenos Aires, citada pela agência de notícias Reuters.

No Brasil, para o então secretário-geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Leonardo Steiner, a escolha de Bergoglio foi “uma agradável surpresa”. “Não se esperava que realmente fosse um latino-americano.” A expectativa dos bispos brasileiros, segundo ele, era muito positiva. “Ele pode levar ao ministério petrino uma experiência bonita, de uma Igreja que está preocupada em ser atuante, uma Igreja dos direitos humanos.”

Um papa humano

Bergoglio foi o primeiro jesuíta e o primeiro latino-americano a ocupar o trono de São Pedro. Sua origem também fez dele o primeiro não-europeu desde o sírio Gregório Terceiro, no século 8. Se sua escolha surpreendeu os produtores de listas de favoritos, suas declarações, atitudes e condução da Igreja causaram espanto semelhante entre aqueles que apostavam numa repetição do conservadorismo de Bento 16. Muito diferente do antecessor, Francisco logo mostrou-se um papa moderno, próximo de causas sociais e sem medo de tocar em temas polêmicos para a tradição e os costumes católicos.

Crédito, Tullio M. Puglia/Getty Images

Legenda da foto,

Francisco encontra-se com migrantes na ilha de Lampedusa, em sua primeira viagem como papa

Sua primeira viagem como papa, ainda dentro da Itália, teve uma forte mensagem humana. No começo de julho de 2013, Francisco visitou a ilha de Lampedusa, que na época estava lidando com uma crescente chegada de migrantes vindos de partes do mundo atingida por conflitos armados ou pobreza extrema – ou ambos.

“Nós perdemos um sentido de responsabilidade fraterna”, disse o pontífice na ilha, ao criticar o que chamou de “indiferença” do mundo com migrantes e refugiados. Sua preocupação mostrou-se ainda mais válida quando, três meses depois, um barco transportando mais de 500 pessoas, que partira da cidade de Misrata, na Líbia, naufragou a centenas de metros de Lampedusa. A maioria dos ocupantes da embarcação era da Eritreia e da Somália. O naufrágio deixou 368 mortos.

Ainda em julho, Francisco fez sua primeira viagem internacional, para o Brasil. Participou, no Rio de Janeiro, da Jornada Mundial da Juventude, evento da Igreja Católica para jovens do mundo todo, realizado pela primeira vez no país. Foi a terceira visita de um pontífice ao Brasil, que já havia recebido João Paulo Segundo e Bento 16. Além de participar da jornada, Francisco rezou uma missa no santuário de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo.

Crédito, AFP

Legenda da foto,

No primeiro ano de seu papado, Francisco visitou o Brasil e circulou pelo Rio em seu papamóvel

Na viagem de volta para Roma, Francisco falou com jornalistas por mais de uma hora, durante o voo. Durante a entrevista coletiva, tocou num assunto delicado e polêmico que abordaria com relativa frequência nos anos seguintes: a relação da Igreja com os homossexuais. No mês anterior, o papa havia mencionado, numa reunião interna, a existência de corrupção e de um certo “lobby gay” operando na burocracia do Vaticano. Posteriormente, disse ser contra qualquer tipo de lobby, não apenas de gays. Durante o voo, porém, sua fala sinalizou uma abertura inédita ao tratar do tema. Disse que homossexuais deveriam ser integrados à sociedade, não deixados no ostracismo. “Se alguém é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?”

Com o passar os anos, Francisco seguiu mostrando uma face mais compreensiva em relação à comunidade homossexual. Em junho de 2016, em nova entrevista coletiva dentro de seu avião – desta vez retornando da Armênia -, ele disse que homossexuais não deveriam ser discriminados, mas sim “respeitados e acompanhados pastoralmente”. Mais: segundo ele, a Igreja deveria pedir desculpas àqueles que havia marginalizado. “Eu acho que a Igreja não apenas deveria pedir desculpas a uma pessoa gay que ela ofendeu, mas deve também pedir desculpas aos pobres, às mulheres que foram exploradas, às crianças que foram exploradas pelo trabalho. Deve pedir desculpas por ter abençoado tantos armamentos.”

Crédito, AFP

Legenda da foto,

Francisco celebrou uma missa para uma multidão na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro

Francisco não se tornou um ícone gay nem deixou de mostrar preocupação com o tema, especialmente quando envolvia o interior da Igreja. Em dezembro de 2018, o papa chamou a homossexualidade de “modismo” e de “uma questão muito séria” e conclamou os representantes da Igreja a respeitarem o celibato. Afirmou que a melhor maneira de lidar com a existência de padres gays era não permitir que homossexuais entrassem na Igreja. Em relação à homossexualidade na sociedade como um todo, porém, o discurso de Francisco tornou-se cada vez mais acolhedor.

Sua postura culminou com sua histórica declaração, em outubro de 2020, sobre a união de homossexuais e a constituição de uma família com pessoas do mesmo sexo. Apesar de anos antes ter dito que “o casamento é entre um homem e uma mulher”, ele associou homossexuais aos conceitos de “família” e “união”. “Pessoas homossexuais têm o direito de estar numa família”, disse o papa, como parte de um documentário. “Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família.” O caminho, segundo ele, seria a união civil. “O que temos de criar é uma legislação para união civil. Dessa forma eles estão legalmente cobertos.”

Crédito, Rosdiana Ciaravolo

Legenda da foto,

O casamento gay foi muito abordado pelo papa, cujo rosto virou máscara usada em evento gay em Milão (Itália)

Abuso infantil

Francisco assumiu o comando da Igreja em meio a uma crise que já afetara seus dois antecessores imediatos: as sucessivas acusações e suspeitas de abuso sexual por padres e bispos católicos contra crianças. Se nos tempos de João Paulo Segundo a Igreja foi acusada de abafar denúncias, e críticos de Bento 16 dizem que ele não dedicou atenção suficiente ao problema, Francisco decidiu adotar diferente postura. Logo de início, ele mostrou estar ciente de que a credibilidade e respeito da Igreja Católica junto a seus fiéis e a comunidade internacional estavam em jogo.

Com menos de um ano de papado, em dezembro de 2013, Francisco anunciou a abertura de um comitê para combater o abuso sexual envolvendo integrantes da Igreja. A ideia era atacar o problema sob o aspecto pastoral, produzindo orientações e códigos de conduta para evitar futuras ocorrências – em vez de apenas lidar com elas no campo disciplinar e jurídico. A partir de então, o papa buscou um equilíbrio difícil ao tentar defender as ações da Igreja sob seus predecessores e reconquistar a confiança de vítimas e da comunidade católica. Em março de 2014, um mês depois que um relatório das Nações Unidas criticou a cúpula católica na crise sobre abusos sexuais, Francisco defendeu o balanço das ações de sua instituição. “Ninguém fez mais [do que a Igreja]. Ainda assim, a Igreja é a única a ter sido atacada.”

Crédito, AFP

Legenda da foto,

Evento de 2019, convocado e comandado pelo papa, buscou avanços no combate ao abuso infantil na Igreja

No mês seguinte, porém, o pontífice encontrou-se com um grupo de defesa dos direitos das crianças e fez sua primeira declaração contundente sobre o tema. Ele pediu perdão em nome da Igreja e referiu-se às ações de abusadores como um “mal” e “dano moral conduzido por homens da Igreja”. Em julho daquele ano, sua condenação foi além dos autores de crimes sexuais e passou a atingir autoridades católicas que os acobertaram. “Eu imploro seu perdão, pelos pecados de omissão por parte de líderes da Igreja que não responderam adequadamente a relatos de abuso feitos por membros da família, assim como pelas próprias vítimas.”

Em agosto de 2018, o escândalo de abuso sexual na Igreja foi tema de uma carta do papa para a comunidade católica no mundo todo. “Nós não demonstramos cuidado pelos pequenos; nós os abandonamos”, afirmou Francisco em sua mensagem. Com o documento, ele abriu caminho para ações mais concretas, começando com a convocação, feita em setembro, de bispos do mundo todo para uma conferência sobre abuso sexual em Roma, em fevereiro de 2019.

O evento no Vaticano, chamado Encontro sobre Proteção de Menores de Idade na Igreja, contou com a presença de todos os chefes das conferências nacionais de bispos e outros líderes, vindos de mais de 130 países. Ao longo de quatro dias, o evento tratou de questões como responsabilidade, punição e transparência, além de definir futuras ações, como treinamento e orientações sobre contato com autoridades policiais. Falando ao final do encontro, Francisco chamou clérigos que cometem abusos de “ferramentas de Satã” e prometeu sempre lidar com qualquer caso futuro com “a maior seriedade”.

Crédito, EPA

Legenda da foto,

Membros da organização ECA elevaram a pressçao sobre a Igreja contra abusos cometidos por padres

Como resultado, em maio, Francisco determinou que toda denúncia de abuso sexual de criança ou o acobertamento de qualquer denúncia precisa, obrigatoriamente, ser relatado por integrantes da Igreja. Em dezembro, o papa também decidiu acabar com o chamado “segredo pontifício” para casos de abuso sexual de menores de idade na Igreja. Baseado em regras definidas por Paulo Sexto em 1974, o “segredo pontifício” estabelece ações internas que devem ser conduzidas em segredo por lidarem com temas considerados graves. Tal proteção deixou de valer para denúncias de abuso infantil, atendendo os clamores por maior transparência da Igreja. O papa também decidiu alterar a definição do Vaticano de pornografia infantil, aumentando sua gravidade e alterando sua definição, elevando a idade da pessoa usada nesse conteúdo, de 14 para 18 anos.

Já em fevereiro de 2020, Francisco determinou a formação de uma força-tarefa no Vaticano para apoiar o combate ao abuso sexual infantil. O grupo, formado por especialistas em direito canônico, teria mandato de dois anos. Também como consequência de toda a nova realidade no papado de Francisco, o Vaticano iniciou, em outubro de 2020, um processo inédito: o julgamento de dois padres acusados de envolvimento com abuso infantil. Gabriele Martinelli, de 28 anos, foi acusado de abusar de um menino entre 2007 e 2012, e Enrico Radice era acusado de encobrir o crime.

As mudanças dentro do Vaticano em termos de atitude, pensamento e procedimentos envolvendo suspeitas de abuso infantil expuseram a diferença que o papado de Francisco representava para tema tão importante. Tal oposição ficou ainda mais clara quando seu antecessor, Bento 16, ainda vivo e ativo, decidiu se pronunciar novamente sobre o assunto. Enquanto papa, Bento 16 chegou a pedir desculpas e referiu-se aos escândalos como “vergonha”, mas suas palavras e ações foram consideradas insuficientes. Em abril de 2019, suas ideias voltaram a causar polêmica.

Crédito, Reuters

Legenda da foto,

Apesar da relação cordial entre os dois papas, Bento 16 manifestou-se sobre abuso infantil, causando polêmica

Em um ensaio de cerca de 6 mil palavras, publicado por uma agência de notícias católica alemã, Bento 16, então com 91 anos, disse que a culpa pelos abusos cometidos por clérigos era da “liberdade sexual total dos anos 1960”. “Por que a pedofilia alcançou tamanhas proporções? A razão é a ausência de Deus.” O ex-papa culpou a produção cultural e as roupas usadas na época por o que chamou de “colapso mental” que por sua vez levou à violência. O documento, uma rara intervenção pública de Bento 16 após sua renúncia, foi amplamente criticado. Citado pela agência Reuters, o professor de teologia da Universidade de Marymount, na Virginia (EUA), chamou a carta de “constrangedora”.

Na política, polêmicas

Em suas declarações públicas, em geral Jorge Mario Bergoglio manteve-se fiel ao nome que escolheu como papa. Sempre que pôde, posicionou-se em favor dos menos afortunados, sejam eles pobres, imigrantes ou vítimas de injustiça, e em defesa do meio ambiente. Numa época em que a política passou a ser dominada por discursos mais extremistas, muitas vezes priorizando a proteção de fronteiras em vez da compaixão com seres humanos, a voz do papa gerou impacto político.

Crédito, Getty Images

Legenda da foto,

Algumas posições de Francisco, que pareceu próximo do líder cubano Raúl Castro, geraram críticas de conservadores

Em 2015, declarações de Francisco geraram uma discussão a respeito de seus pensamentos sobre economia e política. Em junho daquele ano, a BBC News produziu uma reportagem com esta provocativa pergunta no título: “Será o papa um comunista?”. O texto citava a aproximação do pontífice com o líder de Cuba, Raúl Castro, que o visitara em Roma e lhe fizera muitos elogios. A BBC ouviu um economista conservador e católico dos Estados Unidos, Stephen Moore, que não gostava do que via. “Eu acho que este é um papa que claramente tem algumas tendências marxistas”, afirmou. “Eu acho isso bastante perturbador.”

No mês seguinte, julho, durante visita à Bolívia, Francisco fez duros ataques à ordem capitalista mundial. Segundo ele, o sistema econômico global “impôs a mentalidade do lucro a qualquer preço, sem considerar a exclusão social ou a destruição da natureza”. Declarações como essas, além de sua postura ativa em defesa de migrantes e refugiados e sua preocupação com o meio ambiente, fizeram de Francisco alvo de militantes conservadores. Inclusive no Brasil, uma das principais nações católicas do mundo.

Depois da chegada do direitista Jair Bolsonaro à Presidência, em janeiro de 2019, o Palácio do Planalto passou a ver o papa como um adversário do governo, por considerar que a Igreja Católica tinha conexões históricas com o Partido dos Trabalhadores. O principal motivo de discórdia era o Sínodo da Amazônia, evento convocado por Francisco para o final daquele ano, no Vaticano, para debater o trabalho da Igreja na região – na época afetada por uma grande onda de queimadas.

Crédito, AFP/Getty Images

Legenda da foto,

Donald Trump e Francisco expusera opiniões opostas sobre alguns temas, o que gerou tensão entre os dois

Em outubro, na abertura do Sínodo, o tom dado pelo papa foi de defesa dos povos indígenas, com críticas ao que chamou de “ideologias” que pautam uma mentalidade colonizadora. Dias depois, um evento conservador em São Paulo, o CPAC Brasil – um braço da americana Conferência Conservadora de Ação Política -, contou com ataques ao Vaticano de Dom Bertrand de Orleans e Bragança, descendente da família imperial brasileira. O documento final do Sínodo defendeu a ordenação de homens casados na Amazônia, como forma de aumentar o número de padres na região – ideia que geraria reação interna de tradicionalistas.

Tensões semelhantes ocorreram com o governo americano e a comunidade conservadora apoiadora do presidente Donald Trump. Durante a campanha presidencial de 2016, Francisco criticou a proposta de Trump de construção de um muro contra a entrada de migrantes na fronteira com o México. Ao deixar o México de volta a Roma, o papa disse: “Uma pessoa que só pensa em construir muros, onde quer que seja, e não em construir pontes, não é um cristão. Isso não é o Evangelho.” Trump respondeu: “Um líder religioso questionar a fé de uma pessoa é algo vergonhoso”. Outras farpas foram trocadas entre os dois líderes ao longo dos anos, com Francisco criticando a política americana de separar crianças de seus pais imigrantes. As divergências não impediram, porém, que em 2017 o papa recebesse Trump e sua esposa, Melania, no Vaticano, em visita oficial.

Igreja dividida

O papa Francisco acumulou admiradores em todo o mundo. Sua disposição em enfrentar a crise dos abusos sexuais dentro da Igreja, sua defesa incondicional de imigrantes e pobres, sua preocupação com o meio ambiente e seus gestos acolhedores dirigidos aos homossexuais indicaram um caminho de modernização da Igreja Católica. Isso não queria dizer, entretanto, que os conservadores concordavam com a visão de Francisco. O pontífice continuava enfrentando resistências internas em muitos temas, e muitas comunidades católicas conservadoras o viam com desconfiança.

Apesar das aberturas que indicou em várias áreas, o papa manteve inalterada a postura da Igreja Católica contrária ao aborto e indicou que não havia possibilidade de ordenação de mulheres com a autoridade de um padre, para que possam conduzir missas. A proposta saída do Sínodo da Amazônia, porém, de ordenação de homens casados na região, abriria um precedente muito significativo. Tanto que o tema levou ao reaparecimento daquele que prometera manter-se em silêncio: Bento 16.

Crédito, Jeff J Mitchell/Getty Images

Legenda da foto,

Disposto a modernizar a Igreja, o papa ganhou admiração por onde passava, como na Irlanda, que visitou em 2018

Já tendo expressado sua opinião com a carta sobre abusos sexuais, Bento 16 surgiu, no início de 2020, como co-autor de um livro. A obra do cardeal ganês Robert Sarah, Do Profundo de Nosso Coração, apresenta uma defesa vigorosa da norma do celibato. O livro foi inicialmente avaliado por críticos como uma reação aos movimentos de Francisco de tentar relaxar as regras nesse quesito. Diante da repercussão inicial, no entanto, a assessoria de Bento 16 negou que ele fosse co-autor da obra, informando apenas que ele havia colaborado com um texto. O livro foi então alterado, mostrando apenas Sarah como autor, “com a colaboração de Bento 16 – Joseph Ratzinger”. O capítulo escrito pelo ex-papa, no entanto, não deixa dúvidas do que ele pensa. Escreveu ele: “A condição de casado envolve um homem em sua totalidade, e como servir ao Senhor também exige total dedicação de um homem, não parece ser possível abraçar as duas vocações simultaneamente”.

Francisco tirou a Igreja Católica do campo conservador em que se encontrava com Bento 16 e a colocou num rumo modernizante e próximo de causas humanas e sociais. Tal caminho foi bem recebido por grande parte da comunidade católica mundo afora, mas tanto no Vaticano como fora dele há muitos que discordam. Tais disputas provavelmente continuariam por muito tempo, inclusive após terminada a era de Francisco no trono de São Pedro. O papa argentino, porém, deixou uma marca que dificilmente será apagada. Após sua passagem pelo comando da Santa Sé, talvez a Igreja nunca mais seja a mesma.

Este artigo é parte da série 21 Histórias que Marcaram o Século 21, da BBC News Brasil.

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Fonte: BBC

Marcações: