Guerra na Ucrânia: como sobrevivi a bomba de 500 kg que atingiu teatro de Mariupol

  • Hugo Bachega e Orysia Khimiak
  • Da BBC News em Lviv (Ucrânia)

Mariia fotografada após o ataque
Legenda da foto,

Mariia, que era voluntária na Cruz Vermelha Ucraniana, tentou ajudar os feridos no ataque, mas seu kit estava dentro do teatro

Enquanto a cidade portuária de Mariupol estava sendo reduzida a escombros por bombas russas, centenas de civis, principalmente mulheres e crianças, foram se esconder em um teatro perto da orla, um grande edifício da era soviética.

Na última quarta-feira, uma bomba caiu e — em segundos — o prédio foi repartido em dois e arrasado. Ainda não sabemos quantos morreram, mas a BBC conversou com sobreviventes que descreveram pela primeira vez o que aconteceu quando a bomba caiu.

Durante toda a manhã, aviões russos voaram sobre os céus da cidade.

Mariia Rodionova, uma professora de 27 anos, morava no teatro há 10 dias, tendo fugido de seu apartamento no nono andar com seus dois cachorros. Ela acampou ao lado do palco em um auditório perto dos fundos do prédio.

Naquela manhã, ela pegou alguns restos de peixe de uma cozinha ao ar livre para alimentar seus cães, mas depois percebeu que eles não haviam bebido água. Então, por volta das 10h, ela amarrou seus cachorros nas suas malas e foi em direção à entrada principal, onde uma fila estava se formando para água quente.

Foi quando a bomba caiu.

Ouviu-se o som de um estalo alto. E depois o som de vidro quebrado. Um homem veio por trás e a empurrou contra uma parede, protegendo-a com o seu próprio corpo.

A explosão foi tão alta que ela sentiu uma dor intensa em um de seus ouvidos, tão intensa que ela pensou que seu tímpano tinha estourado. Ela só percebeu que os tímpanos estavam bem porque conseguia ouvir os gritos das pessoas. Eram gritos por toda parte.

A força da explosão jogou outro homem contra uma janela. Ele caiu no chão, com o rosto coberto de cacos de vidro. Uma mulher, que também tinha um ferimento na cabeça, tentou ajudá-lo. Mariia, que era voluntária na Cruz Vermelha Ucraniana em Mariupol, reuniu seus sentidos o suficiente para gritar, pedido à mulher que parasse.

Gritos de uma menina de cinco anos

“Eu disse ‘Espere, não toque nele. Vou trazer meu kit de primeiros socorros e ajudo vocês dois'”, lembrou ela. Mas seu kit estava dentro do teatro, e aquela parte do prédio havia desabado. “Só havia escombros”, disse ela. Era impossível para ela entrar.

“Durante duas horas, não pude fazer nada”, disse ela. “Eu só fiquei parada. Eu estava em choque.”

Vladyslav, um chaveiro de 27 anos que não quis dar seu nome completo, também entrou no prédio naquela manhã. Ele tinha alguns amigos lá dentro e foi procurá-los. Ele estava perto da entrada principal quando a explosão aconteceu. Ele correu com outros para um porão e, 10 minutos depois, ficou sabendo que o prédio estava pegando fogo.

“Coisas horríveis estavam acontecendo”, disse ele.

Vladyslav viu muitas pessoas sangrando. Alguns tinham fraturas expostas. “Uma mãe estava tentando encontrar seus filhos sob os escombros. Uma criança de cinco anos estava gritando: ‘Eu não quero morrer’. Foi de partir o coração.”

É provável que apenas uma bomba tenha causado todo esse estrago no teatro naquela manhã, concluiu a análise dos Serviços de Inteligência McKenzie para a BBC.

“Devido ao míssil parecer atingir com precisão o centro do edifício, acreditamos que seja uma bomba guiada por laser, provavelmente a KAB-500L ou variante similar, lançada de uma aeronave”, disse o grupo com sede em Londres.

“A natureza da explosão indica que ela estava armada com um fusível instantâneo, portanto, não conseguiu penetrar nos andares térreos.”

Pela precisão do ataque é muito provável que o teatro tenha sido o alvo escolhido.

Imagens de satélite divulgadas pela empresa norte-americana Maxar, feita dias antes ao ataque, mostram que a palavra “crianças” em russo estava claramente pintada no gramado em frente ao teatro, visível de qualquer avião militar que passasse por ali.

A Rússia nega ter atacado o teatro. E também negou ter atingido alvos civis na Ucrânia, embora seus ataques a inúmeros prédios residenciais e outras instalações não-militares tenham sido bem documentados em todo o país e em nenhum lugar de forma mais brutal do que em Mariupol.

Andrei Marusov, um jornalista investigativo de Mariupol, havia visitado o teatro dois dias antes do ataque. “Todo mundo sabia que era um ponto importante para muitas mulheres e crianças”, disse Marusov, ex-presidente da Transparência Internacional Ucrânia. “Havia apenas civis lá.”

Naquela quarta-feira, dia do bombardeio, ele havia subido ao topo de seu prédio às 6h para observar a cidade. Os aviões ainda voavam no ar. Ele disse que aviões russos bombardearam a área do teatro, a orla do Mar de Azov, durante toda a manhã.

“Vi que o centro da cidade estava coberto de fogo e explosões constantes”, disse.

Mariia também se lembra de aviões militares “fazendo círculos” perto do teatro naquela manhã e “jogando bombas em outro lugar”. Mas não era incomum para ela avistar aviões militares sobrevoando a área. Ela havia se acostumado com o som deles.

Ainda há muitos detalhes que permanecem obscuros sobre o ataque. Acredita-se que até mil pessoas estavam abrigadas no teatro. Alguns pareciam ter se baseado em seu bunker subterrâneo ou abrigo antiaéreo, de acordo com outros que se esconderam no prédio e autoridades da cidade. Mariia viu outras pessoas morando em corredores lotados de andares mais altos.

Uma coisa que fica clara pelos relatos que a BBC ouviu é que as pessoas vagavam pelo complexo, seus corredores e terrenos, e outras iam e vinham.

Crédito, Anadolu Agency / Getty Images

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O teatro destruído de onde Mariia se afastou

No dia seguinte ao ataque, o conselho da cidade disse que 130 pessoas haviam sido resgatadas. Em uma atualização posterior, autoridades disseram que possivelmente muitos outros haviam sobrevivido. Mas não houve notícias desde então. A cidade está em um estado tão desesperador que é possível que nunca tenhamos uma imagem clara de quantas pessoas estavam no teatro e quantas sobreviveram.

A “casa” de Mariia dentro do teatro durante os dias em que esteve lá era em um auditório com um belo lustre no teto. Ela se instalou bem ao lado do palco, porque seus cachorros haviam atraído algumas queixas. Ela disse que havia cerca de 30 pessoas naquele salão e acredita que todas elas devem ter morrido quando a bomba caiu. Foi pura sorte ela ter saído naquele momento.

Após as explosões, ela não conseguiu encontrar seus cães, o que foi desesperador: “Para mim”, disse ela, “meus cães eram mais importantes do que tudo”.

Vladyslav disse que viu muitas pessoas saindo do prédio, algo que Mariia também viu.

Fugindo da cidade

“Alguns estavam com suas malas”, disse ela. “Ninguém sabia o que fazer, e a área ainda estava sendo bombardeada.”

Do lado de fora do teatro, ela também ficou observando os danos. Ela percebeu que não fazia sentido procurar outro abrigo. Foram algumas horas atordoadas e ela finalmente foi embora.

Ela tentou parar qualquer carro que saísse da cidade. “As pessoas estavam em pânico”, disse ela, “ninguém me deu carona.”

Ela começou a caminhar ao longo do litoral. Primeiro, ela chegou à vila de Pishchanka.

“Conheci uma mulher que perguntou se eu estava bem. Comecei a chorar”, disse.

Deram-lhe chá e comida e convidaram-na a passar a noite. Na manhã seguinte, ela continuou andando, até chegar a Melekyne. Um toque de recolher significava que ela tinha que parar de caminhar às 20h. No dia seguinte, ela caminhou até Yalta. E no seguinte, para Berdyansk. “Eu caminhei todo esse tempo”, disse ela.

Mariupol viu os piores horrores da agressão da Rússia à Ucrânia. As tropas invasoras cercaram a cidade e a atacaram implacavelmente por quase um mês, do ar, da terra e, nos últimos dias, também do mar. Cerca de 100 mil pessoas permanecem presas, submetidas a um cerco medieval. Sem eletricidade, sem gás, sem água corrente.

Quando Mariia saiu de seu apartamento para ir ao teatro, sua avó, que morava com ela, recusou-se a ir. “Ela apenas disse: ‘É meu apartamento, minha casa. Vou morrer aqui’.”

Mariia ainda está esperando para saber se ela está viva.

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Fonte: BBC