Os diários secretos de mulheres afegãs após chegada do Talebã ao poder

  • Sodaba Haidare
  • BBC 100 Women

Afghan women, illustration

Crédito, Ghazal Farkhari

Quando o Talebã tomou a capital afegã, Cabul, em 15 de agosto de 2021, os únicos tiros disparados foram de celebração. Para as mulheres afegãs, entretanto, as salvas de tiros representaram a perda de todos os seus direitos e liberdades.

Cinco dessas mulheres enviaram seus diários para a BBC, fornecendo um retrato das rápidas mudanças sofridas nas suas vidas desde então.

15 de agosto – ‘Dia do Juízo Final’

Existe uma cena na série de TV The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia, no Brasil), baseada no romance distópico de Margaret Atwood, na qual a protagonista – a editora literária June Osborne – chega ao escritório em uma manhã para descobrir que os novos líderes do país haviam proibido as mulheres de trabalhar.

O chefe de Osborne reúne todas as mulheres funcionárias e diz a elas que devem recolher os seus pertences e ir para casa.

Em 15 de agosto de 2021, Maari, ex-soldada do Exército afegão, tem uma experiência quase idêntica.

Às 7h30 da manhã, ela se levanta para ir ao trabalho em um ministério governamental, esperando um dia cheio de reuniões e conferências. Ao sair de casa, ela percebe imediatamente que as ruas estão misteriosamente silenciosas, mas segue no seu caminho, pegando seu telefone para verificar sua agenda de reuniões.

Quando ela entra no escritório, seus colegas homens exclamam atônitos: “Você veio trabalhar!”

“Acho que Cabul não vai cair”, responde ela.

Mal ela havia colocado sua bolsa sobre a mesa, seu chefe vem ao seu encontro. “Vá e diga a todas as mulheres que elas devem ir para casa”, diz ele.

Ela faz o que lhe é ordenado e vai de sala em sala, dizendo para as mulheres saírem imediatamente. Mas, quando seu chefe pede que ela vá para casa, Maari se recusa a ir.

“Enquanto meus colegas homens estiverem aqui trabalhando, eu também ficarei”, diz ela.

Maari não é qualquer chefe de gabinete. Ela é uma funcionária de alto escalão e seu histórico militar é impressionante. Por isso, seu chefe aceita o que ela diz, ainda que relutante.

Mas, à medida que o dia passa, vai se tornando impossível ignorar os relatos da entrada do Talebã em Cabul. O chefe de Maari decide fechar as portas do ministério e mandar todos para casa.

Em outro ponto da cidade, a professora de geografia Khatera está iniciando uma nova aula. Seus 40 alunos – todos meninos adolescentes – folheiam seus livros em busca da página certa.

Em pouco tempo, outros professores entram na sala de aula com seus telefones. Existem relatos conflitantes no Facebook. Alguns dizem que o Talebã está em Qargha – uma cidade próxima a Cabul – e outros, que eles estão em Khot-e Sangi – já dentro da capital. O diretor então suspende as aulas e manda todos para casa.

Crédito, Ghazal Farkhari

Quando Khatera chega ao ponto de ônibus, ela vê as pessoas correndo para todas as direções, carregando bagagem e crianças. O tráfego está congestionado.

“Todos estão sargardaan” (“perdidos”, no idioma local, dari), escreve ela. “Parece o Dia do Juízo Final.”

Khatera começa a andar. No início, ela não estava preocupada, até que observa soldados afegãos dirigindo-se ao aeroporto com mochilas nas costas e seus filhos seguindo atrás, segurando a ponta dos lenços das suas mães. Todos estão indo embora.

O coração de Khatera se acelera e ela começa a correr. Agora ela sabe que o Talebã está de volta.

“Este é o pior pesadelo”, repete ela sob sua respiração.

Quase ao mesmo tempo, Zala, estudante da Universidade Norte-Americana do Afeganistão, recebe um e-mail dizendo que ela será levada para os Estados Unidos em até 48 horas. Ela faz então uma pequena viagem para Shar-e Naw, uma área comercial no noroeste de Cabul, para comprar itens essenciais para a viagem iminente.

Zala também começa a ver as pessoas correndo e pergunta o que está acontecendo. A primeira pessoa que ela aborda está correndo rápido demais para responder, até que um homem conta a ela que o Talebã havia tomado Cabul.

Zala fica paralisada.

“Estou perdendo minhas forças, minhas mãos e pés começam a tremer. Como vou chegar em casa?”, pensa ela. Ela chora ao passar pelos cafés e restaurantes onde costumava reunir-se com seus amigos para tomar café e ouvir música. Imagens de toda a sua vida passam à sua frente.

Zala é jovem demais para ter conhecido a vida sob o Talebã, mas ouviu histórias horríveis dos seus pais, que viveram sob o regime nos anos 1990. A menos que ela consiga pegar o voo, este será o seu futuro.

4 de setembro – As mulheres protestam

Crédito, Ghazal Farkhari

Antes da tomada de Cabul pelo Talebã, Wahida Amiri, advogada com 31 anos de idade, dirigia uma biblioteca no centro da capital.

Ela havia reunido cerca de 5 mil livros e seu sonho era expandir-se pelo Afeganistão, para incentivar as mulheres a adotar o hábito da leitura.

Para ela, a chegada dos soldados do Talebã – patrulhando as ruas e determinando como as pessoas devem viver – é um ato de injustiça que precisa ser enfrentado.

À medida que o tempo passa, sua raiva vai aumentando.

“Por que ninguém diz nada? Por que ninguém faz nada?”, pergunta ela a cada pessoa que passa.

Proibida de trabalhar, Washida passa os dias sentada na varanda. Era o seu lugar preferido da casa, onde ela podia ouvir as pessoas conversando, pássaros cantando e cães latindo. Agora, o silêncio é total.

Em agosto passado, ela contava os aviões que deixavam o aeroporto de Cabul, às vezes 10 ou 20 por dia, levando afegãos para longe da sua terra-natal.

“Se todos estão saindo, quem vai ficar?”, ela se pergunta. Nenhuma mulher com formação vai ficar no país?

“O Afeganistão está ferido. Está despedaçado”, pensa ela.

Uma noite, uma amiga telefona para Wahida e diz: “Vamos protestar”.

Em uma tarde de sexta-feira, um grupo de mulheres reúne-se na casa da amiga. Elas se autodenominam Movimento Espontâneo das Mulheres Lutadoras do Afeganistão e, no dia seguinte, 4 de setembro, elas tomam as ruas para exigir direitos iguais.

Elas se reúnem no shopping center Foroshgah e pretendem marchar até o palácio presidencial afegão. Mas, já no Ministério das Finanças, a curta distância dali, elas são confrontadas por sisudos soldados do Talebã.

“Os soldados são muitos. Eles estão nos cercando. Nós dizemos a eles que nosso protesto é pacífico, mas, antes que pudéssemos perceber, somos encurraladas contra uma parede e eles disparam gás lacrimogêneo”, conta Wahida.

Nos dias seguintes, muitas mulheres relatam terem sido abordadas, chicoteadas e atingidas com bastões que emitem choques elétricos.

7 de setembro – ‘Não tenho medo da sua arma’

Nesse dia, o Talebã declara vitória no Vale do Panjshir – uma pequena província no norte do Afeganistão, conhecida pela resistência contra a União Soviética e o Talebã nos anos 1990.

Em 2021, essa província é o último território que permaneceu fora do controle do grupo militante.

A família de Wahida é do Vale do Panjshir e ela vai novamente às ruas, desta vez com sua cunhada e seis amigos homens.

Ela pede um cessar-fogo em Panjshir e é abordada por um grupo de soldados do Talebã furiosos portando fuzis AK-47. Um deles se aproxima de Wahida e a ameaça: “É melhor você ir para casa fazer o almoço”.

“Não tenho medo da sua arma”, responde Wahida. “Sou capaz de debater qualquer assunto que você quiser. E não vou para casa cozinhar.”

No dia seguinte, o Talebã proíbe os protestos.

17 de setembro – Salvando vidas

Crédito, Ghazal Farkhari

No setor de saúde, as mulheres são muito importantes e não se pode perdê-las.

Mahera, uma jovem médica obstetra e ginecologista em um hospital movimentado de uma província no norte do país, permaneceu em casa na primeira semana após a ocupação, até que recebeu uma ligação para que retornasse.

Mas não era fácil trabalhar com o Talebã.

“Eles reclamavam de tudo”, conta Mahera. “Quando os pacientes se queixavam de falta de atendimento ou do preço dos remédios, eles vinham nos intimidar. Eles achavam que estávamos tratando mal os pacientes.”

Muitos profissionais da saúde deixaram o país e a maioria das clínicas está fechada. Mahera agora viaja para 12 distritos, oferecendo atendimento de emergência. É um trabalho fundamental, pois o Afeganistão tem uma das piores taxas de mortalidade infantil e materna do mundo.

“No dia do meu retorno, vesti um chaderi [um manto que cobre o corpo da cabeça aos pés]. Eu estava tremendo embaixo dele”, ela conta.

“Mas, conforme os dias foram passando, acho que o Talebã se acostumou conosco e eu não precisava mais usar o manto.”

25 de setembro – Coração partido

Uma semana depois que o Talebã anunciou a reabertura das escolas para meninos em todo o país, Khatera recebe uma ligação pedindo que ela voltasse ao trabalho.

Ela coloca seu uniforme e caminha até o que ela chama de seu “lugar feliz”. Khatera tem saudades do cheiro de giz ao escrever no quadro-negro e dos seus alunos atrevidos perguntando a ela os nomes das capitais. Ela está transbordando de emoção.

Quando Khatera chega à escola, fica claro que seus alunos também estão felizes em vê-la. Eles pegam suas agendas e pedem a ela que as assine, como fazem os fãs em busca do autógrafo de uma celebridade. Mas ela é imediatamente chamada para a sala do diretor.

Todas as suas colegas mulheres estão ali. Elas são instruídas a assinar o registro e voltar direto para casa.

“O Emirado Islâmico do Afeganistão ainda proíbe as mulheres de trabalhar”, segundo o diretor.

Por que todas as professoras mulheres foram convocadas para nada? Khatera acha que o diretor quer ganhar favores do Talebã mostrando as assinaturas das mulheres prontas para trabalhar.

No portão da escola, ela para e olha para a sala de aula onde lecionou por 10 anos. Khatera quer dizer aos meninos que um dia estará de volta, mas não consegue evitar as lágrimas.

No dia em que o Talebã tomou Cabul, Khatera ficou abalada e temerosa, mas a ida à escola partiu seu coração.

Crédito, Ghazal Farkhari

27 de outubro – ‘Eles estão nos procurando’

Maari e suas antigas companheiras do Exército Nacional Afegão ficaram escondidas desde a chegada do Talebã – que prometeu anistia aos antigos oficiais, homens e mulheres, mas Maari não acredita nisso.

“Eles vieram para a minha região várias vezes perguntando para as pessoas nas ruas onde nós estamos. Eles dizem que estamos escondendo armas em casa e querem falar conosco”, ela conta.

Um dia, alguém bateu à porta da casa de uma das colegas de Maari que lutaram contra o Talebã. Olhando pelo visor, ela reconheceu um comerciante, mas não abriu a porta.

“Eles estão mostrando uma fotografia sua em toda parte”, disse ele para a porta fechada, para o caso dela estar ouvindo. “Eu mesmo vi a fotografia. Se você ainda estiver aqui, fuja e salve-se!”

Maari é particularmente vulnerável por ser da comunidade xiita Hazara, que sofre perseguições há muito tempo. A sua família, no centro do Afeganistão, foi recentemente retirada de casa à força pelo Talebã. Ela não tem para onde ir.

“Eu poderei morrer de fome porque não posso dar um passo para fora de casa e ninguém ficará sabendo”, conta ela.

Maari afirma que a comunidade internacional esqueceu as mulheres do Exército do Afeganistão. Todos os dias, ela pede ajuda a pessoas de fora do seu país, mas elas parecem estar cada vez mais distantes.

5 de novembro – desejo de sair

Zala nasceu depois da invasão norte-americana do Afeganistão. Ela estudou direito e ciências políticas em uma universidade de prestígio, pois seu pai era um homem influente e podia pagar as mensalidades.

O primeiro avião que ela deveria tomar não levantou voo.

Crédito, Ghazal Farkhari

Desde então, a cada duas semanas ela é informada que vai ser retirada do país. Fazer as malas e desfazer as camas apenas para refazer tudo de novo tornou-se um ritual para Zala e sua família.

“Hoje estamos separando todos os pratos e talheres porque fomos informados que seremos retirados do país nas próximas 24 horas. E eles nos disseram para não fazer malas grandes, então estou fazendo apenas uma mochila”, escreve ela.

A adolescente que adorava experimentar visuais diferentes agora trocou suas calças justas, túnicas coloridas e lenços por um hijab preto.

“Eu nunca havia vestido nada como isso”, afirma Zala, que não está acostumada com o hijab e leva um tempo para poder vesti-lo corretamente. “Agora é a vez do lenço” – ela cobre seu rosto para evitar ser reconhecida quando sair.

23 de novembro – 100° dia

Há exatamente 100 dias, o Talebã tomou o Afeganistão e sua capital, Cabul.

Na maioria das províncias, incluindo a capital, as meninas permanecem proibidas de frequentar a escola secundária e as mulheres ainda não podem comparecer aos seus locais de trabalho. Seus cargos permanecem vagos ou foram ocupados por homens.

A economia está entrando em colapso devido à perda de auxílio internacional e as baixas temperaturas do inverno já chegaram. Segundo o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas, 95% dos afegãos não têm alimento suficiente.

Khatera, a professora escolar, e Mahera, a médica, são as únicas provedoras das suas famílias e estão enfrentando dificuldades para colocar comida sobre a mesa. Nenhuma das duas recebe pagamento há meses.

Todos os anos, mais ou menos nessa época, os sistemas de aquecimento central do Afeganistão são ligados – mas não o de Khatera. Ela não tem dinheiro para pagar.

6 de dezembro – A vida está paralisada

Wahida Amiri está mais exausta a cada dia que passa. Mas ela está determinada a continuar sendo a voz das mulheres afegãs.

Maari conseguiu sair de Cabul e agora vive em local desconhecido – apenas dois dias depois que ela saiu, o Talebã foi à sua casa.

Khatera permanece em casa no frio, sonhando em voltar para a escola.

Zala ainda espera ser retirada do Afeganistão. Hoje ela recebe outro e-mail sobre uma possível evacuação nas próximas 24 horas. Ela começa a acreditar que poderá nunca sair do país.

Mahera recebeu recentemente um pedido de casamento de alguém ligado ao Talebã. Ela não quer se casar com ele. Todos os dias, ela enfrenta uma decisão difícil: salvar a vida dos seus pacientes ou a sua própria.

Todos os nomes são fictícios, exceto o de Wahida Amiri.

Ilustrações de Ghazal Farkhari (Instagram: @rasmorwaj).

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Fonte: BBC

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