Shinzo Abe: por que assassinato do ex-premiê pode mudar Japão para sempre

  • Rupert Wingfield-Hayes
  • Da BBC News em Nara (Japão)

O primeiro-ministro japonês Shinzo Abe em 27 de dezembro de 2016 em Honolulu, Havaí.

Crédito, Getty Images

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Assassinato a tiros de Shinzo Abe levantou questões em um país onde pessoas não pensam em crimes violentos

Desde que as notícias do ataque a tiros contra o ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe foram divulgadas na sexta-feira (08/07), mensagens circulam entre amigos e conhecidos, todas com uma mesma pergunta: como isso pode ter acontecido no Japão?

Viver no Japão acostuma as pessoas a não pensar em crimes violentos.

Além disso, a identidade da vítima só torna a notícia mais chocante. Shinzo Abe não era mais o primeiro-ministro do Japão, mas ainda era uma importante figura na vida pública japonesa e provavelmente o político mais conhecido no país das últimas três décadas.

Quem iria querer matar Abe? E por quê?

O que seria algo equivalente — algum outro ato de violência política igualmente chocante para a população local. O que vem à mente é o assassinato a tiros do primeiro-ministro sueco Olof Palme em 1986 ou mesmo o assassinato do presidente americano John F. Kennedy em 1963.

Palme foi atacado a tiros em uma rua movimentada em pleno centro de Estocolmo, no primeiro assassinato de um líder político nacional na Suécia desde 1792. A motivação do crime nunca foi esclarecida.

Quando digo que as pessoas não pensam em crimes violentos aqui no Japão, não é exagero.

Em 2020, houve 32 mortes atribuídas a armas de fogo no Japão, segundo o Small Arms Survey, que monitora esse tipo de violência globalmente. O Japão tem aproximadamente 125 milhões de habitantes — a título de comparação, o Brasil tem 212 milhões de habitantes e registrou 39 mil homicídios por arma de fogo em 2020.

Sim, existe a Yakuza, a famosa máfia do Japão. Mas a maioria das pessoas nunca tem contato com ela. E mesmo a Yakuza evita armas, porque as penalidades por posse ilegal simplesmente não valem a pena.

Ter uma arma no Japão é extremamente difícil. Exige não ter antecedentes criminais, treinamento obrigatório, avaliação psicológica e extensas verificações do passado da pessoa, incluindo a polícia entrevistando vizinhos.

Consequentemente, o crime com armas virtualmente não existe aqui. Em média, há menos de dez mortes relacionadas a armas de fogo no Japão a cada ano. Em 2017, foram apenas três.

Não é de se admirar então que, após o atentado contra Shinzo Abe, grande parte da atenção tenha se voltado para o atirador e a arma que ele usou.

Quem é ele? De onde ele tirou a arma? A mídia japonesa relata que o homem de 41 anos é um ex-membro das forças de autodefesa do país, equivalentes às Forças Armadas.

Mas uma análise mais detalhada mostra que ele passou apenas três anos na Marinha.

A arma que ele usou é mais curiosa. Fotos dela no chão após o tiroteio mostram o que parece ser uma arma caseira. Dois pedaços de cano de aço colados com fita adesiva preta, com algum tipo de gatilho feito à mão. Parece algo produzido a partir de instruções obtidas na internet.

Então, trata-se de um ataque político deliberado ou o ato de alguém delirante, alguém que queria se tornar famoso, atirando em alguém famoso? Até agora, não sabemos.

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A notícia chocou um país que se orgulha da segurança pública

O Japão certamente teve sua parcela de assassinatos políticos. O mais famoso foi em 1960, quando o líder do partido socialista do Japão, Inejiro Asanuma, foi esfaqueado no abdômen por um fanático de direita empunhando uma espada samurai. Embora extremistas de direita ainda existam no Japão, Abe, um nacionalista de direita, parecia um alvo improvável.

Nos últimos anos, vimos outro tipo de crime se tornar mais comum aqui. O homem quieto e solitário com rancor contra alguém ou alguma coisa.

Em 2019, um homem incendiou um prédio que abriga um estúdio de animação popular em Kyoto, matando 36 pessoas.

O homem disse à polícia que tinha rancor contra o estúdio, porque ele “roubou seu trabalho”.

Em outro caso em 2008, um jovem dirigiu um caminhão contra uma multidão de consumidores no distrito de Akihabara, em Tóquio, depois saiu do veículo e começou a esfaquear pessoas que assistiam à cena. Sete foram mortas.

Antes de realizar o ataque, ele havia postado uma mensagem online dizendo: “Vou matar pessoas em Akihabara” e “Não tenho um único amigo, sou ignorado porque sou feio. Sou pior do que lixo”.

Ainda não está claro se o tiro de Abe se encaixa na primeira ou na segunda categoria. Mas parece certo que o assassinato mudará o Japão.

Dado o quão seguro o Japão é, a segurança aqui é muito relaxada. Durante as campanhas eleitorais, como a em curso atualmente, os políticos literalmente ficam nas esquinas fazendo discursos e apertando a mão de transeuntes.

É quase certo que foi por isso que o atacante de Abe foi capaz de chegar tão perto e descarregar a arma que ele mesmo construiu.

Isso certamente terá que mudar depois de hoje.

O Japão vai às urnas no domingo (10/07) para renovar a Câmara Alta do Parlamento. Depois do atentado a Abe, o primeiro-ministro Kishida confirmou o calendário eleitoral e mandou reforçar a segurança de seus ministros.

O atual sistema de proteção dos políticos foi iniciado em 1975, após um incidente envolvendo o então premiê Takeo Miki. Agredido por um membro do grupo da extrema-direita quando participava de um funeral, ele passou a criticar a Polícia Metropolitana de Tóquio por não fazer o suficiente para garantir sua segurança.

Arma usada no assassinato

Foi com uma arma artesanal de 40 centímetros de comprimento que Tetsuya Yamagami, de 41 anos, tirou a vida do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe. Tetsuya Yamagami fez dois disparos com a arma, antes de ser imobilizado por seguranças. Ele não reagiu.

À polícia, ele admitiu a autoria do crime, disse ter planejado tudo há alguns meses e contou que estava insatisfeito com o ex-primeiro-ministro, por isso pretendia matá-lo.

Durante revista na casa do acusado, também em Nara, policiais encontraram objetos semelhantes à arma usada no atentado e outros explosivos.

Artefatos de produção doméstica têm incomodado a polícia nos últimos anos, mas se tornaram ainda mais preocupantes depois da popularização das impressoras 3D.

Esses aparelhos permitem fabricar em casa partes, peças e objetos inteiros, em diferentes tipos de materiais.

“Nós fiscalizamos, da mesma forma que fazemos com as convencionais, mas é muito difícil achar essas armas caseiras, porque hoje em dia qualquer pessoa pode comprar uma impressora 3D”, comentou um instrutor da Academia Nacional de Polícia.

“Temos que mudar as leis e melhorar o sistema de segurança.”

No caso de Abe, as autoridades não informaram se a arma caseira, que tinha dois cilindros envoltos com fita adesiva preta e fios à mostra, foi feita com uma impressora 3D ou não.

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Fonte: BBC