cronic A bigornaNo outro dia peguei uns sapatos que gosto muito, mas com as solas já bastante gastas pelo tempo e saí procurando um sapateiro. Missão impossível.
Onde foram parar os sapateiros?
Neste mundo cada vez mais estranho, certas profissões desapareceram e foram morar no dicionário.
Ou melhor, exilaram-se no Google.
Os sapatos, assim como os barbeadores, os computadores e telefones celulares já entraram na era do descartável.
É quase impossível conseguir um remendo, uma meia-sola ou substituir a rebimbola da parafuseta nas coisas. Vejam os mecânicos, por exemplo. Eles já não consertam, apenas substituem as peças enguiçadas do carro por outras novas.
No início deste século XXI ainda em fraldas – descartáveis, obviamente – as coisas já não são feitas para durar. A indústria é bruta.
Eternos, só os diamantes, como diz o reclame na televisão:
“Diamonds are forever”.
O amor, não.
O casamento acabou, mas o diamante do anel ficou. Com a noiva, claro. Nada mais justo. Este é mais um dos privilégios concedido às ex-esposas desta era industrial.
Segundo um amigo de uísque, ser esposa é um ótimo negócio. Com o que romanticamente discordo.
Recém-divorciado, ele garante que ex-esposa é uma das melhores profissões que existem. Rio dele.
E ser esposa? – pergunto:
Nem tanto, ele admite.
Mas eu falava dos meus sapatos, confortáveis, presente de aniversário de 45 anos, couro macio, Made in China, apesar do nome italiano no avesso da língua:
Altobelli.
Pego nos sapatos, apalpo, fito-os e penso nos lugares que caminhamos juntos.
Fomos a festas, reuniões importantes e até a um congresso realizado no Rio de Janeiro.
Aqueles sapatos pretos pisaram as areias sagradas de Copacabana diante do olhar de reprovação dos banhistas.
Juntos, fomos a vários casamentos e a um funeral.
Não gostaria de me desfazer deles, que estão bem conservados na parte de cima. É só trocar os cadarços, penso eu. Com capricho e cera, ficam novinhos em folha.
Mas não tenho quem troque o solado ou, na pior das hipóteses, faça-lhe uma meia-sola, aquele tratamento em que uma nova camada de couro é colada à velha.
Neste momento me dá saudade de Seu Haroldo, homem de poucas palavras e torcedor do Botafogo, pai de Schubert, um amigo de infância que o bairro inteiro chamava de Chumbo ou, mais carinhosamente, Chumbinho.
Seu Haroldo passava tardes inteiras escutando música clássica e reparando os sapatos e sandálias daquele povo humilde que habitou a minha infância.
Ele montou seu comércio onde deveria ser a sala da casa, com a palavra “sapateiro”, escrita por ele mesmo na porta da rua.
Lá dentro tinha um banquinho – que devia fazer mal para as costas -, onde ele se sentava curvado de frente para a bigorna, tendo ao alcance da mão uma caixa de madeira em que armazenava pregos e tachinhas de diferentes tamanhos.
A bigorna, para os não iniciados, é uma engenhoca de ferro maciço com três extremidades em formato de pé. Ele enfiava ali o sapato, que era para dar a necessária firmeza na hora da martelada.
Os sapatos recauchutados, lustrados, ficavam em uma prateleira ao alcance dos olhos do freguês.
Uma vez entregues, “duravam até acabar”, como ele garantia.
O cheiro da sala de seu Haroldo é algo que não consegui esquecer e que ficou impregnado em minha memória depois de todos estes anos.
Ficou o odor rude do couro, que ele comprava em peças inteiras e chamava de “sola”.
O aroma da tinta de pintar sapato.
E graxa de engraxar, naquelas latinhas lindas da marca Nugget, com uma tramela de metal.
E o cheiro da inocente cola, que viraria entorpecente nas mãos de meninos sem futuro em todo o Brasil.
Este futuro descartável em que vivemos agora, neste presente sem poesia e sapateiro.

Fonte: Brazilian Voice