A absurda nostalgia do suco de revólver

O homem já havia chegado à Lua quando eu nasci, mas, olhando em retrospecto, às vezes sinto que passei a infância no Neolítico.

Com 7 ou 8 anos eu podia andar solto no quarteirão e tinha até um trocado para gastar em doces. Havia a venda do Luís, na esquina de casa, e mais adiante, quase no portão do cemitério, um boteco sem nome e sem higiene. A bodega ocupava a frente da casa antiga e espaçosa onde, nos fundos, morava meu amigo Fabinho.

Eu precisava saltar um ou dois cachorros esquálidos e atravessar a conversa dos pinguços para chegar ao balcão de parcas guloseimas. Havia uns doces de mocotó brancos e rosados, uns chocolates baratos, umas bengalas e chupetas feitas de açúcar. E havia os sucos coloridos.

Chamá-lo de suco é dar-lhe confiança demais –perto daquilo, Tang é suco verde orgânico certificado. Porém é por “suco” que conhecíamos aquele líquido translúcido que vinha nas mais diversas cores e embalado num molde plástico que emulava um brinquedo. Os mais populares entre os garotos eram o suco de Fusca e o suco de revólver.

O suco de revólver condensava tudo o que havia de horrível num só produto. A embalagem estimulava brincadeiras violentas –o que, na época, era totalmente aceito em todos os estratos sociais. O líquido era água, açúcar, corante nefasto e aromatizante nefando.

O artigo em si era algo subindustrial, feito em algum quintal de alguma periferia, sem rótulo ou remoto indício de procedência.

Tudo errado.

Mas os meninos gostavam do tal suquinho de revólver.

Hoje crescidos e frustrados, muitos desses meninos têm uma nostalgia absurda do suquinho de revólver e de tudo o que ele representa.

De uma época em que o Cambuci tenha botecos que pareciam um saloon de filme de caubói –e os pais achavam normal seus filhos frequentá-los para comprar bala.

De um tempo em que era legal um garoto brincar com armas de plástico, mas garotas deveriam ficar só com as bonecas. Em que a indústria alimentar nos empurrava garganta adentro as mais podres porcarias, com propaganda na “Sessão da Tarde” e o beneplácito da mamãe.

De um passado sem frescura, sem fricotes, sem meias-palavras, sem chatice politicamente correta. Sem patrulha com quem bebe demais, fala o que não deve, dá uns sopapos na mulher, corre pelo acostamento, dá carteirada para furar fila e molha a mão do guarda para escapar de multa.

Esses sujeitos sonham em voltar para esse mundo sem freios para a falta de civilidade. E é por isso que apostaram em Bolsonaro: para conduzi-los de volta à bebedeira do suco colorido que vem na pistolinha.

Não dá para acusar o homem de não se empenhar nessa missão.

A foto deste post foi tirada de um site de comércio virtual, o que significa que o suco de revólver nunca deixou de existir.

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Fonte: Folha de S.Paulo