Cadê o pão na chapa?

Na semana passada publiquei no Guia Folha uma crítica do Cuia Café, da chef Bel Coelho, em São Paulo. Numa das visitas, provei um prato que, suavemente, provocou-me uma discreta evocação proustiana (não ficasse o restaurante dentro de uma livraria).

Sendo ali café e restaurante, o cardápio oferece desde pratos mais consistentes até sanduíches, bolos, frutas, granolas. Alguns são servidos em cuia —e foi um destes que me pegou: uma combinação cremosa (mas com elementos crocantes) de cuscuz de milho, ovo perfeito, espuma de queijo Mandala e chips de batata-doce.

Esta cuia, pela combinaçãode ingredientes, pode ser uma entrada do almoço, mas também item do café da manhã. Segundo a chef, a ideia do prato é mesmo evocar o desjejum reforçado do campo
—embora aqui ele tenha uma delicadeza que é típica da Bel, mas não da vida rural.

E foi da minha infância, urbana mas também de uma passagem rural, que me lembrei. Começando pelos cafés da manhã de domingo, que ficavam sob responsabilidade do meu pai, um pernambucano que embrulhava a farinha de milho numa tolha de pano e colocava sobre o vapor da cuscuzeira, para depois ser servida, fumegante, com leite ou manteiga.

Mas em casa, em São Paulo, este desjejum de domingo ainda era muito leve comparado aos da infância do meu pai, no agreste de Pernambuco, e que eu viria a conhecer com a idade de dez anos, após minha primeira viagem de avião. Meu primeiro café da manhã ali, no sítio onde ele cresceu, na cidade de Bom
Jardim, foi a outra lembrança remexida em minha memória pela cuia de Bel Coelho.

Era muito, muito cedo para os padrões do menino paulistano. Galos cantavam num ar fresco enquanto o Sol ainda hesitava em aparecer. E era muita, muita comida para os padrões do café da manhã “continental”, baseado em pão, café e laticínios, a que nos habituamos em São Paulo.

A farta mesa estava coberta de pães e bolos, é certo, como também manteiga e geleias; mas também de macaxeira (a mandioca) cozida, cuscuz de milho, manteiga de garrafa, tapioca, farinha, carne de sol, guisado de bode. Uma refeição para forrar de energia os corpos que iam se entregar ao trabalho no campo. Mesmo que àquela altura, muitos já não se entregassem a esse tipo de lida.

Foi uma viagem em que vi meus avós paternos, conheci o açude do sítio, visitei a Pedra do Navio (rocha neste formato, atração local), percorri a rua mais longa da cidade (e que após a morte precoce de meu pai recebeu o pomposo nome de rua Jornalista Josimar Moreira de Melo); e com tudo isso, a impressão mais forte que me ficou foi a do café da manhã. Primeira lição de como se come diferente em cada lugar, mesmo num prosaico desjejum.

Ao longo da vida e das viagens, esta verdade viria a se repetir com insistência. Em São Paulo, comemos de manhã como os franceses —pão, manteiga, leite, queijos, iogurte, uma presença forte de laticínios. Na hotelaria chamam a isto de café da manhã “continental”, na verdade europeu, mas é continental porque na ilha do outro lado da Mancha estão os ingleses com uma dieta matinal bem diferente: bacon, ovos fritos, linguiças, feijão.

Esta dieta dos anglo-saxões foi exportada para sua colônia americana, e assim, nos Estados Unidos também são frituras, não queijos, que imperam na primeira refeição do dia. Mas não em toda a
América do Norte: no México haverá frutas típicas e tortillas de milho, além de molhos apimentados que não encontraríamos mais ao norte.

E, se rumarmos para o sul, encontraremos nos países andinos próximos da Amazônia uma profusão de frutas ligeiramente familiares a quem conhece o Norte do Brasil, ou absolutamente exóticas para quem fica mais nas redondezas do trópico de Capricórnio.

Viajando pela Ásia, nós brasileiros estranharemos ao ver tanto arroz (de que tanto gostamos no almoço) imperando já tão cedo no dia —e junto a ele, peixes secos e legumes marinados.

Cadê o pão na chapa??

Cada viajante terá sua experiência e suas surpresas a relatar. Mas nenhum será jamais indiferente ao fato de que, ao acordar em diferentes quadrantes do mundo—inclusive em variados lugares de seu próprio país—, os primeiros sabores do dia já serão o alerta da cultura diferente a explorar nas horas do dia que se avizinham.

Fonte: Folha de S.Paulo