Ciclista encontra tempestade de areia, rios e cachoeiras em viagem pela Islândia

A Cândida Brenner de Azevedo já contou aqui no blog como foi sua primeira viagem de bicicleta, quando pedalou por mais de 30 dias pelo Reino Unido.

Agora, ela vem relatar a sua experiência na Islândia, para onde viajou em junho de 2019.

Durante sua pedalada de 30 dias, Cândida enfrentou uma tempestade de areia, passou por derramamentos de lava, por rios de água turquesa e muitas cachoeiras.

Eu sei que em tempos de coronavírus não podemos viajar, e muitas vezes nem sair de casa. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email [email protected].

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Quando a Islândia surgiu como destino dos sonhos, comecei a pesquisar sobre a possibilidade de percorrê-la de bicicleta. Os relatos não eram animadores. Ao contrário, apontavam que realizar o sonho de conhecê-la de bicicleta ia ser um desafio e tanto.

Isso fez com que “aquela força estranha” que nasce dentro de mim nas cicloviagens aflorasse e tornasse a sua realização uma “obsessão”. Li muito e a preocupação maior para concretizar a viagem se tornou o clima.

Na Islândia os ventos são fortes, mudam de direção a todo o momento, geram tempestades de areia e mudança repentina no clima. Checar a previsão do tempo e velocidade do vento é algo corriqueiro para o islandês.

Viajar de bicicleta com esse clima se torna mais complicado na Islândia, devido à baixa densidade demográfica. A ilha é do tamanha do estado de Santa Catarina e tem em torno de 360.000 habitantes, sendo que um terço mora na capital, Reykjavik. Dessa forma, é muito difícil conseguir um local para se proteger e esperar a fúria do tempo passar.

Mesmo com tudo que li, resolvi encarar, sozinha, a ilha de gelo.

Chegou o dia de partir, o coração não cabia no peito de tanta ansiedade, vontade de começar logo a viagem, de viver a Islândia.

Quando cheguei em Keflavik, o primeiro contato já foi surpreendente: no aeroporto tem um bicicletário, com lugar para montar e desmontar as bicicletas, com ferramentas e tudo. Esse cuidado e respeito com as pessoas, sem palavras, apenas com atitudes, me encantou.

Equipamentos arrumados, sono em dia, hora de pegar a estrada. Coração acelerado de felicidade, medo, ansiedade, tudo junto e misturado. O início do pedal foi tenso, por uma rodovia bem movimentada, vento forte e o frio que congelava.

Foi bem desanimador e me fez pensar: “sua louca, o que você está fazendo aqui?” Sempre no início das aventuras eu me boicoto, já estou acostumada.

Logo saí da rodovia movimentada e tive contato com a Islândia dos meus sonhos. Um encantamento tomou conta de mim. Passei a pedalar numa estrada sem movimento, com lava de vulcão derramada por toda a parte, coberta com um musgo delicado e ao fundo fumaça, que devia ser de algum vulcão, ou da produção de energia geotérmica.

Entrei num transe, tudo que eu tinha planejado começava a ser vivido, eu estava pedalando na Islândia, sozinha, a bike e eu, e havia um mundo a ser desbravado.

É difícil descrever a beleza da paisagem da Islândia, é diferente do que estamos acostumados, tudo é negro, devido à formação vulcânica da ilha. A paisagem é vasta, grande, sem muita vida, mas ao mesmo tempo fascinante.

No caminho, passei por uma das atrações mais visitadas da ilha, a lagoa Azul, que tem sua água aquecida pela atividade vulcânica, que também lhe fornece uma tonalidade azulada.

Durante a viagem, a ciclista passou por praias, cachoeiras e casas dentro de rochas (Arquivo pessoal)

Na hora de acampar, procurava pela cidade que tinha planejado terminar o pedal, mas não via nada, nenhum sinal de cidade ou construção, apenas a natureza bruta e linda da Islândia me cercava. Já estava preocupada quando o “santo dos aventureiros” fez com que encontrasse um rapaz pescando.

Parei para falar com ele e, para minha sorte, ele era islandês (como a população da Islândia é muito pequena, é difícil encontrá-los). O islandês disse que eu estava muito perto da cidade, mas que eu não a avistaria da rodovia, já que o padrão das cidades da Islândia era diferente do resto do mundo.

Selvogur era uma cidade com apenas 50 moradores, composta por poucas casas, na beira do mar. Nesse dia, comecei a entender a Islândia, suas peculiaridades e a me apaixonar por ela.

No decorrer dos dias, pedalei por rodovias repletas de flores roxas, na beira do mar, por derramamentos de lava, por rios de água turquesa, passei por muitas cachoeiras e avistei muitos pássaros (era época de reprodução). Também tive contato com os cavalos islandeses, que são menores e mais peludos que os nossos e têm crinas longas, lisas, que ganham vida própria com o vento.

Na Islândia, as atrações turísticas são gratuitas e abertas 24 horas por dia. Não há guarita ou controle de entrada e saída.

Passei por casas construídas abaixo do solo, com grama no telhado e pelo vulcão Eyjafjallajokull, que em 2010 entrou em erupção e fechou os aeroportos da Europa por vários dias. E me surpreendi ao encontrar um grupo muito grande de renas.

Em alguns dias o pedal fluía, em outros o vento era incessante, mudava de direção o tempo todo, tornando complicado pedalar.

Na transição entre o sul (parte mais quente) e o sudeste (parte mais fria), vivi a situação mais desesperadora da viagem. Apesar de ter checado a previsão do tempo, como fazia todo o dia, tive uma surpresa. Em um vale, o vento provocou uma tempestade de areia. Eu estava simplesmente no meio do nada, sem qualquer local para me proteger.

No início, tentei pedalar e, como não consegui, empurrei a bicicleta. Mas mal conseguia mexê-la, pois o vento era forte demais e a areia cortava o rosto (única parte do corpo exposta). Os olhos também eram massacrados, pouco conseguia enxergar. Precisei de horas para sair do vale. Foi tenso. Passado o susto, levei algum tempo para conseguir entender tudo que tinha acontecido. O pedal depois desse episódio foi de pura reflexão.

Nos dias mais pesados de pedal, para relaxar, eu me banhava nas piscinas públicas. Na Islândia, apesar de as cidades serem muito pequenas (em média com 100 habitantes), a maioria tem piscina pública aquecida. É como se fossem uma praça, local de socialização.

Durante o trajeto passei por túneis e, na saída de uma deles, fui parada por policiais que me questionaram: “Os carros te respeitaram? Mantiveram uma distância segura da bicicleta?” Eu não sabia o que dizer e fiquei perplexa com as perguntas. Eles estavam preocupados com meu bem-estar e segurança. Ao se despedirem, me desejaram sorte na jornada e cuidado.

Rumando para o norte, fui me aproximando da região do lago Myvatn, que é vulcanicamente ativa. Na estrada já dá para perceber isso, tem rios azuis, montanhas com tons amarelados e o cheiro de enxofre toma conta.

Falando em cheiro de enxofre, na Islândia se usa energia geotérmica e a água quente que sai nas torneiras e no chuveiro, em razão disso, tem cheiro bem forte de ovo podre (enxofre).

Ao redor do lago Myvatn, visitei várias atrações, como o vulcão Hverfjall, o campo de lava Dimmuborgir, o parque Hofdi, o vulcão Skutustadagigar, a usina geotérmica Krafla.

Islândia tem muitas atrações naturais espalhadas pela ilha (Arquivo pessoal)

Nesses passeios encontrei algo inusitado: um chuveiro e uma pia, no meio do nada, com água quentinha para quem quisesse tomar banho… só na Islândia mesmo.

Depois de muitos dias pedalados, cheguei a Akureyri e de lá peguei um ônibus até a capital, Reykjavik, que surpreendeu com ciclovias e faixa de pedestre devidamente sinalizadas, bebedouros para humanos e animais e locais destinados à manutenção das bicicletas, com bomba e ferramentas na beira das ciclovias.

Na Islândia, os ônibus de linha são preparados para levar ciclistas, com um local especial para acomodar as bikes –não é necessário desmontá-las.

O próximo destino da viagem era o Círculo Dourado. Passei pelo Parque Nacional Thingvellir, onde há uma falha geológica entre as placas tectônicas da Europa e da América, visitei o Vale Geotérmico Haukadalur, onde há vários gêiseres e a cachoeira Gullfoss.

Depois de todos esses dias pedalando contra o vento, o que eu queria se concretizou: peguei vento a favor! Eu não pedalava nem nas subidas, parecia que alguém me empurrava.

Finalizado o passeio pelo Círculo Dourado, hora de voltar!

Me apaixonei pela Islândia, pela natureza exuberante, pelo povo, pelo cuidado e respeito que eles têm com as pessoas e com a natureza.

Esse é o relato de um sonho realizado!

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Aviso aos passageiros 1: O casal Rafaela Asprino e Antonio Olinto pedala há tanto tempo que já criou vários guias de cicloturismo. Aqui, eles contam um pouco sobre a serra do Espinhaço, entre MG e BA

Aviso aos passageiros 2: Confira algumas dicas para viajar de bicicleta e não cair em roubadas

Fonte: Folha de S.Paulo