Comendo com Mari Hirata

Como pensar um roteiro gastronômico? Uma possibilidade: o trajeto de lugares visitados com alguém.

Está difícil não pensar na chef, professora e minha irmã postiça Mari Hirata (1959-2021).

Ceifada pelo câncer, ela nos deixou —amargurados, órfãos— no último domingo, 30. Por quarenta anos, quase todos com ela fora do Brasil, estivemos juntos, sempre que possível à mesa ou ao fogão

Começamos comendo em São Paulo. Eu, editor do jornal trotskista O Trabalho, ela, assistente de diagramação. Ambos gulosos e, quando a madrugada apontava, famintos.

“Minha mãe me deu um dinheirinho…”, balbuciava ela às vezes. “Hoje recebi salário”, às vezes era eu. E corríamos para um intervalo gourmet ali ao lado no Dinho’s Place.

Também ocorriam jantares insólitos. Como numa reunião clandestina no litoral paulista, durante um curso de marxismo em que resolvemos, ela e eu, cozinhar. Com os ingredientes disponíveis, chamei um prosaico estrogonofe de “iscas de carne ao molho picante”. E todos nós libelus (da tendência estudantil Liberdade e Luta) enrolamos lençóis no corpo como num banquete romano.

O cardápio melhoraria depois. Na década de 1980, Mari foi a Paris e ficou anos estudando confeitaria e padaria. Quando eu passava por lá para reuniões da Quarta Internacional trotskista era sempre uma festa, ainda que nos limites do que tínhamos no bolso.

Foi, por exemplo, um luxo atacar o almoço (mais barato) no Parc Montsouris: a comida não era tudo isso, mas o lugar era elegante e belo, a companhia, de primeira (meu irmão Ricardo Melo, colunista da Folha, Thomas Pappon, hoje jornalista da BBC em Londres, o dirigente do PT Markus Sokol), e meu franguinho assado me ensinou que eu nunca havia comido frango de verdade.

Anos depois, quando ela, já no Japão, voltou com a família em 1996 para uma temporada em Paris, em qualquer viagem pela Europa eu desviava para lá. Fazíamos compras no mercado de rua, cozinhávamos e comíamos com deleite. Também íamos a restaurantes: munido de uma gravata mal ajambrada (onde a exigiam), atacávamos o Taillevent, o Crillon, o Véfour e onde nos aceitassem.

Uma vez comemos separados. Foi no L’Arpège, onde ela trabalhava para o sensacional chef Alain Passard. Ao final ele veio à mesa, e eu pedi que chamasse Mari. Ele a tratou carinhosamente, sem percebê-la trêmula ante a deferência do chef famoso por destratar funcionários…

Mas o mundo não é só Paris. Claro. Tem o Mocotó, o Maní, o D.O.M, a Casa do Porco, o Evvai —último em São Paulo a que fomos juntos. Sem falar de Tóquio, onde lembro com especial atenção dela me levando ao Den e ao Ryugin.

E os lugares saídos do nada. Certa vez, caminhando por Paris, falávamos do dinamarquês Noma. De repente passamos por uma agência de viagens… e logo estávamos em Copenhague, no mágico restaurante do chef René Redzepi (e passeando, por insistência dele, em Cristiania, o bizarro bairro hippie num terreno do exército onde a principal distração é a maconha).

Também fizemos viagem relâmpago para Auvergne, na França (ao Michel Bras, onde os legumes imperam, a carne da raça local me decepcionou porque era filé-mignon, e na sobremesa tivemos o biscuit coulant, que no mundo virou o patético bolo cru chamado petit gâteau). E um dia fomos ao El Bulli, onde tomamos com Ferran Adrià um café espresso que ele encheu de gelo.

E tínhamos nossas casas paulistanas. As refeições na casa da dona Cecília, mãe da Mari, moram no meu coração (e na memória do meu estômago). Banquetes de um refinamento etéreo, conduzidos —do coquetel à sobremesa— por Mari e seus irmãos, todos exímios artesãos sibaritas.

E, na minha casa, um cardápio monotemático. Carne, no Japão, é rara, cara e, para grelhar, sem graça —muita gordura, nenhuma textura nem gosto de pasto. Mari chegava ao Brasil sonhando com uma boa carne, e eu preparava para ela fraldinha, com arroz, feijão-preto, farofa, quibebe. Muito solicitada para cozinhar sem parar, ela literalmente se escondia em minha casa, proibida de tocar nas panelas. Apenas entornava caipirinhas enquanto conversávamos.

A última fraldinha, no setembro pré-pandemia, foi mais que isso. Um diafragma (entraña) que eu contrabandeei na mala, da melhor churrascaria do mundo, a Don Julio de Buenos Aires. Depois de vinhos, charutos, o sono dos justos. Acho que foi uma despedida à altura.

Fonte: Folha de S.Paulo