Mosquitos na savana até valem a pena; em casa na metrópole, não

Andei sonhando com a África.

Com as feras africanas, como os chamados “big five”, considerados os animais mais perigosos para uma caçada —seja no tempo em que eram os colonizadores europeus que iam caçá-los impunemente, seja quando são eles que caçam os humanos, para proteger-se ou para aplacar a fome com a proteína mais próxima.

Assustadores para enfrentar, eles são majestosos para ver e fotografar, quando passeiam livremente em seu habitat, que pode ser visitado. Esses “big five” africanos, cinco mamíferos selvagens de grande porte muito difíceis de caçar, são o búfalo, o rinoceronte, o elefante, o leopardo e o leão.

Os sonhos foram motivados, porém, por uma sexta fera —só que bem pequena. Não o vírus invisível que tem povoado os pesadelos de toda a humanidade, vicejando amparado por feras humanas como Trump e Bolsonaro, mas sim os minúsculos mosquitos que, nesta primavera com cara de verão, têm feito rasantes sobre São Paulo. Pernilongos.

Pernilongos, mutucas, insetos voadores e picadores de todo tipo costumam estar presentes em nossas viagens à praia ou ao campo. Mas já não pareciam parte do meu cotidiano na metrópole.

Na minha infância paulistana, eles estavam sempre à espreita, inspirando táticas diversas (e em geral de eficácia duvidosa): fechar portas e janelas ao entardecer, não deixar lâmpadas ligadas especialmente nestes momentos de lusco-fusco, impregnar os ares domésticos de venenos aspergidos por bombas manuais ou por aerossóis movidos a gases que, mal sabíamos então, estavam violentando nossa camada de ozônio. (Hoje usam gases menos deletérios que o CFC.)

Na época, eu vivia numa São Paulo diferente. Não estava propriamente longe do centro, morando no Brooklin Novo. Minha rua era asfaltada e tinha todos os confortos da modernidade —luz elétrica, água encanada, rede de esgotos.

Ainda assim, havia um quê de vida rural dobrando a esquina: poucos metros atrás corria, a céu aberto e em seu curso natural, o córrego das Águas Espraiadas (hoje encerrado na avenida Roberto Marinho) e, ao seu redor, as ruas eram de terra. Nelas moravam os membros do temido “time da rua de baixo”, com o qual nós do asfalto tínhamos confrontos futebolísticos épicos em campos improvisados nos muitos terrenos baldios que nos cercavam.

Com a vizinhança do córrego e a profusão de terrenos baldios (alguns tomados de mato, onde nos abastecíamos de mamonas para guerras de estilingue), era natural haver uma profusão de pernilongos —quem não era natural éramos nós.

Também nas reservas africanas, nada me surpreendeu encontrar todo tipo de animal, inclusive os minúsculos, mas impertinentes, mosquitos. O que parece inesperado são estes ataques destes dias em plena metrópole. Afinal, não tenho mais um córrego na esquina: estou a bons três quilômetros do rio Pinheiros. E nem estou na borda da selva.

Mas foi um aprendizado da selva que tem me socorrido no momento. Tenho procurado me safar dos ataques usando o recurso que aprendi num hotel da reserva de safáris fotográficos MalaMala —que fica vizinha ao parque nacional Kruger, na África do Sul.

O chalé era grande e até arejado, não chegava a ser um suplício mesmo no calor. Ao chegar, já na primeira noite recebi duas instruções precisas. Primeira: não saia do quarto à noite sozinho nem morto (a menos que não se importe em eventualmente ser morto). Segunda: não desligue o ventilador de teto instalado sobre a sua cama, pois o ar em movimento espanta os mosquitos cujas picadas podem também transmitir doenças.

É o que tenho feito agora, seguindo a segunda instrução. Não tenho ar condicionado em casa, recurso que evito sempre que possível —e, por isso mesmo (além de motivos econômicos), tenho ventiladores de teto em vários cômodos. E são eles que, girando noite adentro, têm me salvado dos pernilongos deste verão precoce.

E pela noite, entre as imagens oníricas de elefantes barrindo e mutucas zunindo, enrosca-se um pensamento. Quando os mosquitos são o preço a pagar pela proximidade com a natureza —os vales do interior brasileiro, as praias dos litorais pelo mundo, a savana africana—, aí até vale a pena. Quando são apenas sintoma do desequilíbrio da ocupação urbana desordenada dos nossos grandes centros, aí passam a ser uma merecida punição.

Fonte: Folha de S.Paulo